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4 out 2002 - 13h00

Casaca virada

Uma vez Flamengo, nem sempre Flamengo. É, confesso que pequei. Traí o time do meu coração. Na verdade, ele foi transplantado. Permanece rubro-negro, mas agora bate pelo Atlético Paranaense. Se você dá de ombros para futebol, nem perca tempo com a leitura do que vai a seguir. No entanto, se a intensidade for sua matéria-prima, a despeito do universo entre quatro linhas, continue. Como cronista, sou
um jogador esforçado, mas nunca deixo de tentar um gol de letra.

Voltemos no tempo. Dezembro de 1978 – eu detesto data porque denuncia a idade… Flamengo e Vasco decidem o Campeonato Carioca com o Maracanã apinhado de gente. Como a equipe tem a vantagem do empate, a torcida vascaína antecipa a comemoração. Também pudera, 41 minutos do segundo tempo! Só faltou combinar com o Zico. Antes de bater o escanteio, ele observa quem pode chegar na bola. O toque vem matreiro, com a curva para fora. O estádio vai explodir.

Rondinelli, um zagueiro bruto, típico beque de fazenda, vem de trás e cabeceia sem a menor chance para Leão. Flamengo 1, Vasco 0. Os detalhes, conferi pela tevê. Na hora, a emoção veio pelo rádio. Fiquei ensandecido, gritava para minha mãe conferir se tinha sido mesmo gol do Mengão. Ganhamos, éramos campeões. Tudo bem, vá lá, mas quê diabos faz um moleque enfurnado nos cafundós do pantanal de Mato Grosso – a divisão estadual veio depois – torcer para um clube do Rio de Janeiro?

O culpado se chama Carlos Henrique Esteves Pereira, meu primo, um advogado que preferiu os abraços grávidos das ondas aos arrepios da lei nos tribunais. Ele era carioca. Eu havia nascido em Corumbá. Ele calçava tênis All Star. Minha mãe só podia comprar Conga. Ele fazia sucesso com as mulheres. Para mim, atabalhoado atrás de óculos sóbrios, elas eram inalcançáveis. Ele era bonito. Bem, melhor eu deixar as qualidades do Carlinhos de lado. Ele torcia para o Flamengo. Agora, sim!

Foi pela influência de Carlos Henrique que virei flamenguista. Do fim dos anos 70 até os anos 80, tive orgulho da minha opção. Vencíamos tudo, tínhamos uma máquina. O Flamengo deu o último suspiro do futebol romântico no Brasil. Para registro: Raul (Cantarelli), Leandro (Toninho), Marinho (Figueiredo), Mozer (Aldair) e Júnior (Leonardo); Andrade (Carpegianni), Adílio (Vítor) e Zico (Gilmar); Tita (Renato Gaúcho), Nunes (Bebeto) e Lico (Júlio César, os dois). A torcida não pagava ingresso. Era couvert artístico.

As coisas começaram a complicar nos anos 90, tempos em que o sindicalismo e o futebol “de resultados” (ou seja: ser pelego e ganhar jogando feio) tornaram-se referenciais e o marketing esportivo/político começou a fazer fortunas de espertos que expropriavam o talento ou carisma alheio. Passei a me empolgar cada vez menos com a redondinha. Era preciso um acontecimento. Apenas uma emoção fortíssima me faria recuperar o gosto pelo grito de gol.

Aconteceu. Já radicado em Curitiba, topei com um vizinho chato. Ele fazia meu apartamento tremer de tanto barulho. Notei que o incômodo era mais freqüente às quartas-feiras e aos domingos. Quando ele não urrava, ficava aquele chiado intermitente de rádio fora de sintonia. Um dia, fulo da vida, decidi tirar satisfações. Não sem antes, por absoluta prudência, pedir a ajuda de amigos que o conheciam bem. Sabe como é, sou pantaneiro macho, mas vai que o vizinho cria resistência…

Que resistência, que nada. Nos entendemos muito bem. Tão bem que passei a visitar meu vizinho com a mesma regularidade que ele costumava me encher o saco. Sim, você já adivinhou: eu moro ao lado da Arena da Baixada, auto-proclamado estádio mais moderno do Brasil. Descontado o exagero – na verdade é um meio-estádio – conceitual, o certo é que fiz dali a minha segunda casa. Minha casaca. Virada.

Quando saía da adolescência, li o relato de André Barcinski sobre um show do Nirvana. Ele descrevia a emoção de ver Kurt Cobain desabrochar comparando ao que tinha ouvido sobre o início dos Sex Pistols. Pois é, meus caros. Eu vi Kléberson antes que ele fosse convocado para a seleção brasileira e ajustasse o meio-campo do time que conquistou a Copa da Ásia. Não ouvi dizer. Eu vi. A história, antes de ser escrita, antes de haver vencedores.

Por tudo isso, digo a vocês que é diferente torcer para um time distante. O exílio pode reforçar convicções, mas também devasta paixões. Foi o que aconteceu comigo. Cansei de acompanhar o Flamengo pelo tubo de imagem. Meu novo amor entrou pela janela da minha sala e lá ficou. Por sorte, ou vontade de Deus, que seja, trouxe as mesmas cores antigas para me adaptar com mais facilidade. Hoje, feliz, admito: eu teria um desgosto profundo se faltasse o Atlético-PR no mundo.

Dary Jr. diz que parou de crescer aos 19 anos, ainda tem medo do escuro e jura que um dia vai morar no melhor sobrado da Praia Brava, em Itajaí (SC).

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