No inferno
Fazia dois anos que meu pai havia morrido. Não festejei meus onze nem meus doze anos. No final de julho, às vésperas dos meus treze, perguntaram-me que presente queria. Respondi que meu presente viria em setembro, ao final do campeonato. Disseram-me que eu era um bobo, um idiota, um louco. Que o Atlético era um clube falido, não tinha time, estava fadado à morte. Que mais uma vez o campeão seria o inimigo.
Fiz promessa. Prometi a Deus (e a Jesus, também!) que não iria decepcionar minha mãe, que não iria matar nenhuma aula, que seria bom aluno, que iria ao culto (sou de família luterana) todos os domingos, que jamais falaria mal de amigos, que nunca trairia uma mulher, que jamais cairia de tanto beber, que…
O dia se aproximava e meu comportamento era exemplar. O único problema é que eu não estaria presente à partida final. Toledo era muito longe, quase 600km de Curitiba, nem asfalto havia. E o último jogo estava marcado para ainda mais longe. Paranaguá ficava a mais de 700km (na época a única estrada ligando Curitiba ao litoral, além da ferrovia, era a da Graciosa).
Na última semana rezei muito. Rezava ao acordar. Rezava no trabalho. Rezava na hora do almoço. Rezava durante o trabalho. Rezava no banho (rezar debaixo do chuveiro é mágico). Rezava durantes as aulas (estudava à noite). Do Colégio La Salle ia direto pra casa, não parava pra bater papo em nenhum bar ou esquina. Em casa, antes de dormir, rezava de novo. Até ao meu pai do céu (o meu pai mesmo!) fiz o pedido, prometendo honrar seu nome.
Na véspera, durante todo o dia, nem saí de casa. Eu me concentrava. Notícias da capital eram difíceis. Para ouvir as duas emissoras de ondas curtas de Curitiba cujo som chegava na divisa com o Paraguai era necessário um processo de engenharia: um fio de luz ligado ao aparelho de rádio, que saía janela afora, subia até a aba do telhado e lá era enrolado num prego, onde havia um chumaço de palha-de-aço (era bem mais barato que bombril!).
A Universo tinha o som mais limpo, mas eu não gostava muito dos repórteres. O narrador até que não era ruim. Dia desses, aliás, li o nome dele numa crônica da Gazeta. Se eu estou com 48, quantos anos terá hoje o Aloar Ribeiro? Para mim, ele era coxa. Dava mais ênfase aos gols do inimigo. Nossos gols eram narrados, os do inimigo eram berrados. Que ficassem com os berros, pois eu mudava de estação (era assim que se chamavam as emissoras de rádio).
A Bedois (então conhecida como Rádio Clube Paranaense, a PRB-2), era melhor. O som não era tão limpo e às vezes (principalmente quando estávamos no ataque, prestes a fazer gol) sumia. Mas tinha dois excelentes repórteres: Jota Pedro e Dias Lopes. Jota Pedro devia ser um polaco (nunca o vi, nem em foto) e, pelo que sei, foi trabalhar na Europa, como homem de rádio de uma fábrica de caminhões. Dias Lopes, magérrimo e careca, era nordestino, um cearense (de Sobral, se não me engano). Este eu conheci quando, anos depois, vim estudar em Curitiba e a convite do Capitão Weber (será que está vivo?) fui trabalhar na FPF. Com o Capitão Weber aprendi muito, inclusive que existe gente boa entre os coxas. Poucos, mas existem. Hugo Weber era um homem sério, íntegro, cordial, gentil, educadíssimo, nem parecia um militar em pleno regime de ditadura militar). Mas eu falava da Bedois, a minha preferida. Lá, além dos repórteres citados, trabalhavam outros dois que mereciam respeito: Cordeiro e Carneiro. Eram, como diria Osmar Santos, animais! Dos dois, fui um grande fã.
Mas, naquele sábado, véspera do grande jogo, em nem saí de casa. Me concentrei. Enquanto Sicupira & Cia estavam no Lima´s Hotel (esse mesmo que até hoje está alí na Desembargador Mota esquina com Dr. Pedrosa), em me concentrava em Toledo, na Estilac Leal, quase esquina com Barão do Rio Branco. À noite, sequer fui ao cinema. Meus pensamentos eram positivos, todos voltados ao dia seguinte.
Domingo, acordei cedo. Fui ao culto e aproveitei para fazer o pedido final. Lembro de minhas palavras (silenciosas) dirigidas a Deus: Senhor, me dê esse presente! Juro que serei teu até o último dos meus dias. Saí da igreja luterana e, sem ir ao La Salle assistir à partida do Campeonato Mirim, fui direito pra casa. Nem almocei direito. Tinha maionese de batatas, frango assado (com recheio!) e crush. Mas eu não tinha fome alguma. Nem a sobremesa (arroz doce com sagu de vinho) eu quis. Minha fome era outra. Era a fome de um grito. Um grito enroscado, preso, contido. Um grito que estava atravessado em minha garganta fazia dois anos, desde aquela noite de quarta-feira de 1968, quando – no Dorival de Brito e Silva aquele grandalhão do Paulo Vechio acabou com nossa alegria.
E chegou a hora do jogo. Era o jogo da minha vida. Chovia muito em Toledo, era um domingo chuvoso, nublado e frio (naquela época ainda não haviam destruído quase toda a natureza a fazia muito mais frio). Começou o jogo. Os raios que caíam atrapalhavam a recepção do som da Bedois. Às vezes, quase sempre nos nossos ataques, o som sumia. E em todas as oportunidades em que o som sumia, eu me lembrava de Deus e fazia novos pedidos. E prometia! Minhas promessas, tenho certeza até hoje, foram fundamentais para a concretização daquele sonho.
Ganhamos! Fomos campeões! Fizemos 4×1 no rubro-negro parnanguara (que palavra bonita!). Depois de doze anos, éramos novamente os melhores do Paraná. Éramos e somos! De todos os nossos títulos, mesmo o de campeão brasileiro, o mais importante para mim foi o de 1970. Nunca esquecerei que não tínhamos dinheiro e que mesmo praticamente falidos prevaleceu a mística da nossa camisa, a que só se veste por amor. Nunca esquecerei das defesas do grande Vanderlei, da força do xerife Zico, da elegância do capitão Alfredo, da garra do Júlio (o símbolo da nossa raça!), da categoria de Reinaldo, do espetáculos dos gols de Sicupira (nosso eterno ídolo!) e é claro da potência dos chutes de Nilson (o homem que encarna a força e o amor à camisa do time de 1970).
As promessas? Nunca as paguei. Não as cumpri. Por isso sei que estou condenado ao inferno. Por isso sei que ao contrário dos Fanáticos serei atleticano até depois da morte, mesmo no inferno!