Eu sei que vão me chamar de louco, eu sei que vão me chamar de mentiroso, mas o que é que eu posso fazer se tudo que há de insólito acontece comigo? Pois é, aconteceu de novo! Pois bem, eu estava indo ao Couto Pereira ontem quando ocorreu o imponderável episódio que passo a lhes narrar.
Saí de casa devidamente vestido com o sagrado manto vermelho e preto. Tomei o ônibus Rua XV Barigüi no ponto situado defronte ao Mc Donald’s do Batel, aliás, não sei por que se chama Mc Donald’s do Batel, pois ele está situado no Seminário, mas não interessa. Vinte e cinco minutos mais tarde, desembarquei num ponto próximo ao estádio e fui caminhando lentamente até a esquina da rua vinte e um de abril.
Logo que iniciei a caminhada, percebi que um cavalo vinha se dirigindo ao meu encontro. Era um cavalinho velho, magrinho, com cara de cansado, mas vinha em minha direção e ninguém que goze de boa saúde mental gosta de topar com um cavalo em seu caminho (vai saber o que se passa pela cabeça de um bicho desses)!
Então. Como eu fiquei meio assim com o cavalo, resolvi disfarçar. Acendi um marlborinho e soltei uma boa baforada na tentativa de encobrir a visão do citado eqüino: não adiantou, ele veio ao meu encontro, resoluto como um cavalo (afinal ele era um cavalo). Veio em minha direção e me interpelou:
– Ô, Rafael, onde fica o Couto Pereira?
Assustei-me com a pergunta, não pelo fato de o cavalo estar falando, mas pela surpresa de ele saber meu nome (afinal num país onde há tantos burros falando nas tribunas do Congresso, como se assustar com um cavalo falante?), mantive a calma e respondi:
– Olha, seu Cavalo, o Couto Pereira fica pra lá, logo ali subindo essa rua em que nos encontramos. Mas como você sabe o meu nome?
– Ora, que indelicadeza a minha, nem ao menos me apresentei! desculpou-se o perguntador cavalo que, de perto, parecia ser boa gente (permitam-me a licença poética. Eu sei que cavalo não é gente, mas foi uma necessária força de expressão, compreendam). Meu nome é Garé, Pangaré!
– E o meu é Rafael, como você mesmo já sabe. Mas sabe como?
– É que está escrito aí na sua camisa do Atlético: “Meu nome é Rafael e eu sou feliz por ser atleticano”, e, de fato, só naquele momento percebi que eu estava usando essa camisa especial, que fiz para que todos saibam o quanto me orgulho de ser rubro-negro.
Feita a nossa apresentação, perguntei ao bom quadrúpede:
– Mas o senhor vai fazer o que lá no estádio, seu cavalo?
– Eu vou tirar satisfações com um tal de Gionédis!
– Mas o que o Gionédis lhe fez, seu Pangaré?
– Ele me xingou e xingou toda a minha classe que é a classe dos Cavalos,
mais especificamente dos Pangarés.
– Ah, é? E como foi que isso ocorreu, seu Pangaré?
– Foi o seguinte, Rafael: o tal Gionédis tem um time muito ruim que se chama Coritiba.
– Certo, seu Pangaré, mas pode pular essa parte que até aí todo mundo já sabe!
– Pois bem. O cara tem um time ruim, mas ruim mesmo de dar nojo. Os atletas são ruins, a comissão técnica é ruim, o estádio é ruim, e ainda não chegou ao fim: a torcida é ruim, o gramado é ruim e até o ar que tem ali é ruim.
– Sei, sei, continue…
– Pois é. Diante de toda essa ruindade o tal Gionédis resolveu falar besteira: disse que todo jogador do coxa é pangaré, e isso é ofensa demais pra nossa classe que, no final das contas, não tem nada a ver com a ruindade deles, o senhor não acha, seu Rafael? Nós, os pangarés, podemos até ser coxos, mas não somos coxas, isso nunca! Nós somos pangarés, mas não somos burros!
E à medida que o cavalo falava, eu percebia que era grande a sua revolta e que ele iria tomar as satisfações que lhe eram devidas nem que para isso tivesse de discutir com o Gionédis de igual para igual. Preocupado, pedi calma ao bom cavalo, me despedi dele e rumei ao portão de entrada do estádio verde.
E eis que o atletiba transcorreu dentro do que eu havia esperado. Muita luta, correria e ao final vitória atleticana para encerrar em alto estilo minha tarde de sábado. Garantido o 2 a 1, saí do estádio cheio de felicidade e, de repente, uma voz atrás de mim chamava o meu nome com um carinho próprio dos grandes amigos. Era o seu Garé, o Pangaré.
– E daí, Pangaré, falou com o Gionédis?
– Falei, falei! repetiu o Pangaré entusiasmado, como se tivesse enfim lavado
a alma.
– E como foi? quis saber.
– Olha, Rafael, a conversa não foi lá muito amistosa e no início ele quis me contrariar. Mas quando ameacei acertá-lo com um coice no meio da cara, ele entendeu minhas razões e prometeu nunca mais usar o nome pangaré em vão!
– Quer dizer que ele vai parar com isso?
– Ou pára, ou coice no Gionédis!
– Acho que ele pára, afinal um coice é sempre um forte argumento, né?
– Pois é, também acho!
– Então está certo, seu Pangaré! Foi um prazer conhecê-lo!
– Calma, Rafael, está indo pra onde?
– Para casa!
– Sobe aí que eu te dou uma carona! e o novo amigo me ofereceu o lombo como transporte e, não sei por que, achei melhor não recusar.
Cinqüenta minutos depois, eu desembarquei em casa são, salvo e feliz. Despedi-me do meu novo amigo e confesso que é um pouco estranho estender a mão para um cavalo na hora de dar tchau, mas assim o fiz. E ele foi embora, caminhando lentamente rua abaixo, com a certeza de ter defendido a sua classe com unhas e dentes de cavalo.
E quando eu entrei pelo portão do meu prédio, ouvi uma voz muito fraquinha que vinha do meio do belo jardim. Dizia a voz:
– Rafael, ô Rafael… aqui embaixo, ó! Sou eu, sou eu…
Forcei o olhar para tentar desvendar alguma coisa e eis que me deparei com uma lesma de walk-man ouvindo os comentários radiofônicos pós-atletiba! Horrorizado, fiz a inevitável pergunta:
– Quem é você, o que você quer de mim?
– Eu sou uma lesma, não está vendo?
– Estou, mas o que você quer de mim, sua lesma?
– Sua lesma, não! Seu lesma, porque eu sou muito macho!
– Certo, certo, mas diga lá: o que você quer de mim?
– Rafael, você sabe me dizer como eu faço para chegar ao Couto Pereira? É que eu tenho de acertar as contas com um tal de Gionédis que disse que a desgraça do time dele é ter um bando de lesmas em campo, e essa ofensa à minha classe eu não vou deixar barato!!! Ah, não vou mesmo!!!