23 dez 2011 - 3h17

A raça de Cocito, o cão de guarda

Ele era o primeiro marcador do meio-campo. Dava proteção à defesa, recuperava as bolas e tinha a responsabilidade de marcar as estrelas das equipes adversárias como Ricardinho (Corinthians), Roger (Fluminense), Kaká (São Paulo) e Esquerdinha (São Caetano). Nenhum deles teve vez com Cocito, que sempre defendeu as cores rubro-negras com muita eficiência e determinação. Chamado de “cão de guarda” durante o Campeonato Brasileiro de 2001, o volante podia ser definido por uma só palavra: raça.

Único jogador a ter participado das três Libertadores disputadas pelo Atlético, Cocito foi fundamental nas conquistas dos Campeonatos Paranaenses de 1998, 2000, 2001, 2002 e 2005, a Seletiva da Libertadores de 1999 e o Campeonato Brasileiro de 2001. Foi neste ano que Cocito alcançou seu melhor momento no clube, especialmente após a chegada do técnico Geninho. Com ele, Cocito ganhou a disputa com Pires pela posição de titular e foi decisivo na fase final da competição.

Também foi naquele ano que Cocito esteve no centro da polêmica com Kaká, na época defendendo o São Paulo, quando foi rotulado como um jogador violento. No lance, Cocito não conseguiu evitar um escorregão e atingiu o meia, que teve que deixar a partida. Mesmo sequer tendo levado cartão amarelo, foi crucificado pela imprensa e acabou ficando marcado para a mídia do eixo Rio-São Paulo como jogador desleal.

Mas 2001 rendeu grandes lembranças a Cocito. Nesta entrevista descontraída e emocionante à Furacao.com, o ex-volante falou sobre a união do grupo, os famosos churrascos, a confiança do time, a coragem de Geninho, o descrédito da imprensa em relação ao Atlético e como cobrava raça dos jogadores, sua principal característica. “Eu falava muito, depois das preleções, que enquanto não saísse sangue do ouvido, a gente não podia parar de correr. Até morrer. Se tivesse que morrer, que morresse”.

O que representou o título brasileiro de 2001 na sua carreira e na sua vida?
Desde criança, quando jogava na base do Botafogo, sempre pensei em disputar um Campeonato Brasileiro. Então ser campeão de um torneio desse, nem se fala. E o Atlético não era considerado um time grande pela imprensa. E por tudo que hoje tem, estrutura, torcida, merecia ser ainda maior e tem tudo pra ser ainda mais. Mas ninguém acreditava que fosse chegar. Ser campeão pelo Atlético foi muito gratificante, tudo valeu a pena, todas as dificuldades pelas quais passamos. Ninguém torcia pela gente e aí foi mais gostoso. Esse título mudou toda a minha vida. Ali mostrou que futebol não é só qualidade técnica, não que não tivéssemos, sabíamos da nossa limitação, mas a nossa união era incrível. Via o Geraldo vibrando no banco, mesmo quando era cortado estava sempre com a gente no vestiário. Quem estava no banco vibrava junto com a gente em campo. Mostrou que para ser campeão não é só qualidade técnica, é vontade, união, é puxar a corda para o mesmo lado. Não pode ter vaidade, um querer se aparecer mais que o outro.

Qual a melhor lembrança que você tem daquele Campeonato Brasileiro?
Um jogo que achei fundamental foi contra o Vitória lá em Salvador, o último da primeira fase, que nos deu a chance de jogar os dois primeiros jogos do mata-mata em casa, já que ficamos em segundo lugar. Com isso, jogamos contra o São Paulo e o Fluminense na Arena, que foi o diferencial. Joguei de líbero improvisado, dando cobertura pro Daniel e pro Igor, já que o time estava quase todo desfalcado. Mas ganhamos de 4 a 2, dois gols do Gabiru e outro do Kleberson. Outro jogão foi aquele contra o Bahia, 6 a 3. Todo mundo fala do gol que salvei em cima da linha no primeiro jogo contra o São Caetano, na Baixada, mas estava 1 a 1, ainda no primeiro tempo, tinha tempo pra recuperar. Mas pra mim, meu lance mais importante foi contra o Fluminense, na semifinal. Estava 2 a 2, uns 30 minutos do segundo tempo e teve uma bola que passou do Nem, quicou e já estava quase entrando na pequena área. Vim na cobertura, o Juan estava esperando a bola baixar, só ele e o Flávio. Vim com tudo e tirei a bola com uma voadora. Até hoje só um torcedor me mandou mensagem falando desse lance e eu disse que sim, que foi o mais importante. A gente tinha 10 minutos apenas pra reagir se tivesse levado aquele gol.

       

Qual foi o momento mais difícil na campanha?
Foi quando o time estava mal, deu toda aquela reviravolta, o Mário Sérgio saiu, aí chegou a partida contra a Portuguesa, o Geninho assumiu e a torcida estava de costas, muitos gritando os nomes das casa noturnas da cidade. Ou seja, quem não tinha nada a ver com aquilo pagava o pato. Aquele foi um momento de instabilidade, todo mundo tinha desconfiança. A gente não tinha começado tão mal, depois começou a cair de novo e a gente nem podia mais sair na rua. Foi um momento mais complicado.

Na sua opinião, quem era o melhor jogador do time?
Não tinha um melhor jogador. Seria injusto dizer que foi o Kléber, Alex, Nem, Kleberson ou Souza. Até porque nós tínhamos 12 titulares, ninguém fala a escalação com 11. Quando chega no meio todo mundo fala “Cocito, Kleberson, Adriano e Souza”. Jogava um, jogava outro. Então não tem como dizer apenas um, era muita união e humildade. O Geninho também teve grande responsabilidade. Primeiro tem que saber de futebol, depois aglutinar a equipe, fazendo todo mundo puxar a corda para o mesmo lado. É difícil comandar, todo mundo quer jogar. Ainda mais fazer os 30 jogadores, todo mundo torcer e o time funcionar. Você entrava no CT e o clima era diferente, todo mundo ajudava, até financeiramente, todos torciam. Falam de churrasco? Adorava. Tinha toda terça. E eu era o último a sair, pode colocar aí. E a cerveja que sobrava eu levava embora. Sempre tomei, mas nunca antes de jogo, dois dias antes não tomava. Na quinta já não tomava. Mas a gente treinava normal, e se tinha churrasco terça, ainda tinha quarta, quinta e sexta pra treinar forte. Mas sempre tinha alegria. Eu nunca fui de sair pra balada, era difícil sair, sempre me reservava. Mas churrasco era o último a sair e ainda trazia pra casa a cerveja e carne que sobravam. Tem meio melhor de confraternizar melhor que churrasco? Todo mundo se unia ainda mais, ficava todo mundo junto, fazia um pagode lá, conversando, jogando baralho, e tudo por intermédio do Geninho. Tem treinador que não faz isso porque tem medo da cobrança depois caso dê um revés. Ah, aconteceu porque fez festa. Mas não, tem que fazer, assumir a bronca e ele fazia, toda terça. A gente perguntava pra ele se iria ter, porque a gente ia jogar ainda. E ele respondia que sempre teria, se ganhássemos ou perdêssemos. Se perde não vai ter por quê? Todo mundo corria muito, dava a vida. Ele dizia: “Eu sei que vocês vão correr. Vão dar migué? Não. Então vai ter, ganhando ou perdendo”.

Como vocês lidavam com o descrédito da imprensa do eixo?
Só fortaleceu. Se eles achavam que ia prejudicar a gente em algum momento, aconteceu o contrário. Eu sempre lia as notícias, da mesma maneira que falavam bem ou mal de mim. Um dia eu era o melhor do mundo, no outro era o pior do mundo. E eu sei que não sou o melhor do mundo, mas sei também que não sou o pior. Mas eu sempre fui programado pra não me contaminar. Mas tinha muita besteira mesmo, eles não sabiam o que a gente estava vivendo. Mas quando tinha algo ruim, ajudava pra gente. Não que isso fosse a nossa motivação, mas ajudava. De maneira nenhuma prejudicou.

Qual foi a importância da Arena e da torcida nos jogos decisivos?
O jogo fundamental pra mim foi contra o Vitória, que nos deu a segunda classificação. Ou seja, foi importante porque justamente a gente sabia que iria jogar as duas em casa com o apoio da torcida. Quantas vezes dentro de campo eu me arrepiava pra jogar? (se emociona) A gente se contaminava. Ainda vejo os jogos, vejo a torcida lá, caveira, fogos, sinalizadores, aquilo arrepia cara. Sou muito emotivo mesmo. Dentro de casa pra ganhar da gente tinha que peidar fogo. Correr mais que a gente, não ia. Tem momento que você está cansado, que não aguenta mais, mas aí dá um pique, luta, corre, e já ouve a torcida fazendo barulho. Da mesma forma que também atrapalha. Vaiar nunca acrescenta nada, deixa pra protestar depois que acabar o jogo. Durante, faz a perna dos caras inchar mais. Tem jogador que é menos preparado psicologicamente do que os outros. Tem cara que você olha e diz, esse é fera, e tem outro que precisa de alguém empurrando. O Kleberson mesmo, naquele campeonato era o jogador que menos tinha responsabilidade em campo, nem tanto de marcar, nem tanto de armar. Se a gente tomasse gol, culpa era do Cocito, Nem, Gustavo e Rogério. Se o time não apoiava, a culpa era dos laterais. Se não armava, era de um meia, ou do Adriano ou o Souza. Claro que o Kleberson tinha responsabilidade, mas era menor do que os demais. Ele era o termômetro do time e foi importante. Desde que ele começou no Atlético, jogando de lateral, carreguei ele, ajudava, conversava. Às vezes o jogo estava complicado, eu sempre dizia, deixe comigo. E isso eu não vejo mais tanto nos times, um ajudando o outro. Eu falava pode: “Pode errar, vai pro pau, pode ir, encara”. Aí perdia uma bola, errava um passe, eu dizia: “Esquece, deixa, toca a bola pra mim, deixa vaiar”. Não estou desmerecendo, mas precisa ter calma às vezes. A torcida incentivou durante todo o campeonato, teve claro, aquele momento de insatisfação e eu entendo. O torcedor, o sócio, sacrifica salário pra poder levar a família no jogo, aí chega e ouve que o time está na noite. Se vão cinco, generalizam entre os 30. Mas a gente sempre comentou, na Baixada a gente era invencível, tanto que perdemos um jogo só, que foi para o Fluminense, na primeira fase.

O que foi essencial para aquela equipe ser campeã?
A gente sempre falou que pra ganhar da gente, ia ter que jogar muito, porque não iam correr mais que a gente. Era um time com muita confiança, até porque isso passa de um pra outro. Se você fica receoso com alguma coisa, também começa a contaminar e passa insegurança. Mas se é otimista, contagia também, o cara cresce. E era sempre assim mesmo, a gente falava que íamos atropelar, que não tinha pra ninguém. E eu sempre falava muito, depois das preleções, que enquanto não saísse sangue do ouvido, a gente não podia parar de correr. Até morrer. Se tivesse que morrer, que morresse. Quantas vezes joguei cheio de dor, aí tinha aqueles momentos que tapava o ouvido sabe, até perguntava aos médicos o que era aquilo, eu lá, correndo, aguentando, sempre acima do meu limite. Raça é quando você supera os seus limites, acima do que você pode. Até hoje corro na esteira e brigo com o tempo. Sempre me cobrei muito e continuo me cobrando.

Antes da chegada de Geninho, o time realmente tinha problemas com a “noite”?
Eu acho que permaneceu a mesma coisa, seja com um técnico ou com o outro. Quem saía, continuou saindo. Mas é aquela coisa, se o time estiver perdendo e o cara está tomando água, vão falar que é vodca. Se estiver ganhando e o cara está tomando whisky, é guaraná. Então tudo é fase, tudo é momento. Tem momento que o jogador tem que se preservar. Fase ruim não é pra fazer festa, ai é desrespeito com torcedor e com a diretoria.

Qual a importância dos outros integrantes da comissão técnica e funcionários do CT e da Arena na motivação do grupo durante a campanha?
Todos tiveram sua parcela de contribuição. No CT, como falei, o clima era muito bom, todo mundo gostava da gente, pela nossa humildade, de conversar, ajudar. Não tinha vaidade, um se achando mais que o outro. Se a gente quisesse comer uma coisa diferente, eles faziam. Tudo que a gente pedia era aceito. Então todos ajudavam de alguma forma. O Bolinha, os auxiliares quando você queria treinar mais, os roupeiros, chuteira assim, roupa assado. Aí teve aquele vídeo motivacional durante o torneio, que a Suzy Fleury fazia a cada jogo, junto com o Geninho. E nas finais tinham os funcionários, falando boa sorte, querendo aquele título junto com a gente.

E as preleções do Geninho na reta final, como foram?
Ele sempre era muito objetivo, não tinha muito que falar. Eu já sabia o que ia fazer. Os craques dos outros times sempre eram meus. Contra o Corinthians, eu marcava o Ricardinho; contra o São Paulo, o Kaká; e contra o São Caetano, o Esquerdinha. Enfim, os 10, os mais feras, eu tinha que pegar todos. Era tudo bem definido. E chega numa hora que não tem mais o que falar. Às vezes é uma bola parada, o esquema tático, mas não tinha muito o que dizer. A preleção mais marcante foi a das faixas mesmo, a Suzy fazia um trabalho muito bem feito. Lembro que na véspera do jogo contra o São Paulo, a gente assistiu aquele filme Homens de Honra, e foi marcante também. Antes das rezas cada um tinha a sua mania. Eu sempre jogava com a mesma sunga, era superstição. Mas eu lavava né, e só jogava com ela, em 2001 foi assim. Tem o cara que reza sempre no mesmo canto, outro que lê o mesmo salmo na Bíblia, enfim, cada um tem um negócio. Eu sempre lia o salmo 91 antes dos jogos, sempre na ida para o estádio.

Como a liderança de Nem influenciou a garra do time?
Era o capitão, né, tinha liderança e qualidade técnica. Nosso time encaixou bem daquele jeito, era o líbero, tinha visão de jogo, chamava os caras, aquele jeitão de se posicionar, colocava respeito nos adversários. Quando precisava, sabia a hora de dar chapéu, bicuda, sola na cara. Mas teve até uma vez, naquele jogo que ganhamos de 5 a 1 do Santa Cruz, que eu fiz uma falta e ele veio pra cima de mim, esbravejando, e eu também fui pra cima. Aí todo mundo separou, imagina, os dois serem expulsos. Mas depois conversamos, tudo era resolvido na hora, até porque todo mundo queria o mesmo objetivo.



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