Contradições latino-athleticanas: modernismo sem modernização?
“Desamarrar as vozes, dessonhar os sonhos: escrevo querendo revelar o real maravilhoso, e descubro o real maravilhoso no exato centro do real horroroso da América. (…) Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia”. (Eduardo Galeano, Celebração das Contradições/ 2 in. O livro dos Abraços).
No início da última década do século XX, o antropólogo argentino Garcia Canclini, escreveu um dos mais relevantes trabalhos para interpretação da realidade da América Latina. Através do famoso texto “Culturas Hibridas”, o autor demonstrou como nossas sociedades (i.e., as latino-americanas) foram capazes de construir seus imaginários em base a dois discursos dominantes. Um primeiro marcado pelo discurso da tradição cultural; e, um segundo marcado pela necessidade de modernizar nossas sociedades. Deste modo, o autor plateia a seguinte pergunta: “quais são as estratégias para entrar na modernidade e sair dela?”; – tal pergunta é colocada, a medida que de acordo com o autor, “na América Latina, onde as tradições ainda não se foram e a modernidade não terminou de chegar, não estamos convictos de que modernizar-nos deva ser o principal objetivo, como apregoam políticos, economistas e a publicidade” (2003, p. 17).
Apesar da dificuldade que temos no Brasil de nos reconhecermos ou, nos identificarmos, como latino-americanos, nossa história cultural não permite que possamos nos afastar desta realidade. Primeiro porque temos em comum com nossos países (co)irmãos da América Latina, um passado de espólio das populações nativas (i.e., os indígenas). Segundo porque fomos colonizados e herdamos, de maneira forçosa, uma língua de origem latina. E terceiro, pelo fato de estarmos localizados nesta porção do continente americano, o que faz com que diferentemente dos países de língua saxônica, temos aquilo que podemos denominar como “nuestra latinidade”.
Tais coincidências, vão muito mais além destas aparências históricas e culturais. Se inscrevem na base de nossas organizações e instituições. Remete a um contexto em que o ‘moderno’ e o ‘tradicional’ se misturam, se hibridizam e se abigarram, conformando aquilo que pode ser considerado uma ‘cultura mista’ ou ‘híbrida’. A exemplo de palavras como ‘paranaense’ que só pode ser tomada em conta, através da hibridação entre uma língua autóctone (i.e., o guarani) e uma língua moderna vinda do além mar, como a língua “lusófona”. Deste modo, as lições impetradas por Garcia Canclini, servem para pensarmos como assumimos através da lógica do mercado desportivo, narrativas que revindicam a modernização do nosso futebol, sem que nossas sociedades tenham ascendido à modernidade. Para o autor uma pergunta a ser realizada em relação a nossas sociedades seria: o que significa ser moderno? O antropólogo sustenta ser possível considerar “quatro movimentos básicos que constituem a modernidade: um projeto emancipador, um projeto expansionista, um projeto renovador e um projeto democratizador” (2003, p. 31).
Neste sentido, em que implicaria o processo de modernização realizado pelo nosso amado Furacão desde meados da década de 1990? Ou ainda, como fez o autor: quais são as estratégias para entrarmos na modernidade? E quais são as estratégias para sair dela? É possível se modernizar sem abdicar ou abandonar nossas tradições históricas? E ainda, é possível se modernizar sem se ‘emancipar’, sem ‘expandir’, sem se ‘renovar’ ou sem ‘democratizar’ nossas instituições? Visando responder algumas destas perguntas é que proponho uma reflexão para pensarmos nossa realidade enquanto clube de futebol e as determinantes que nos impedem de abandonar as tradições para adentrarmos de cabeça na modernidade.
Primeiramente, é preciso reconhecer a ideia de modernização como algo utópico e de um tipo ideal, que encarnado pelo racionalismo, apenas nos conduz a um horizonte incerto e muitas vezes incompreensível aos olhos do conservador ou do tradicionalismo. Como convencer pessoas ou, torcedores, a aderir ao projeto de modernização, se tudo ao nosso redor ainda circunda relações não-modernas e portanto, alienadas, restritivas, reativas e também, autoritárias?. Como podemos sonhar com uma realidade emancipada, quando os ícones da luta para emancipação dos países latino-americano, tornaram-se apenas um adereço, um fetiche ou um signo para a disputa futebolística?
Como nos relacionamos cotidianamente com o nosso objetivo enquanto torcedores para conquistar a Copa Libertadores de América (ah, e estamos chegando!), quando na maioria das vezes e dos casos, as pessoas nem sabe quais e quem foram os nossos libertadores ou, emancipadores. Quando digo isto, não me refiro apenas aos destacados generais (que não é o Thiago Heleno), tal como os mais conhecidos Simón Bolivar, José de San Martin, Benardo O’Higgins, José Gervasio Artigas, José Gaspar de Francia e o nosso, Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes). Me refiro aos heróis desconhecidos, não memoriados, ou esquecidos pela implacável dureza do tempo. Isto é, as populações que guiados pelo afã emancipador se lançaram no campo de batalha para conquistar está que parece ser a nossa ‘liberdade torta’, ‘em um espelho invertido e desforme’, que assim como o ‘Calibã’ de Willian Shakeaspeare, só pode ser pensado através da dualidade entre a dor e reconciliação, entre o sofrimento terreno e a possibilidade de sonhar com um futuro distinto daquelas mazelas vividas no presente.
Deste modo, quem são estes heróis sem rosto, sem nome, sem cara e disforme? Nossa libertação, é uma obra de um ou mais generais, ou é parte deste esforço coletivo multifacetado e multicolorido das populações indígenas, negras e brancas, que se lançaram na frente de batalha?
Por este fato pergunto: nós os torcedores do Athletico Paranaense fazemos parte deste projeto de modernização que passa pela emancipação? Ou estamos sendo apenas guiados por nosso líder visionário que vislumbra e visualiza um futuro de modernidade e liberdade? Acredito que sim, fazemos parte deste processo e nos lançamos no campo de batalha, quando somos obrigados a ter de defender ideias ainda pouco experimentadas, tal como o mirabolante projeto de “Torcida Humana”, que não é possível de explicar sem se perguntar em que momento da história alguma torcida no mundo não tenha sido composta por uma humanidade latente.
Para defender esta retórica e discurso incompreensível de um futuro utópico, onde duas torcidas distintas e opostas por diferentes fatores possam conviver sem expressar a ‘selvageria’ da guerra e confronto das torcidas organizadas. Seria primeiramente necessário negar a humanidade de alguém, e o que é pior, daqueles que fazem parte do projeto emancipador da nossa realidade enquanto clube de futebol. Seria necessário reconhecer que em ‘alguma humanidade’, provavelmente escondida em alguma ‘arca’, não exista os padrões de violência que emergem das oposições e organizações de grupos humanos.
Seria ainda mais necessário reconhecer que o projeto emancipador do Athletico, passa pela segregação humana, tornando o futebol um espaço filtrado pelos mentores deste projeto obscuro, que se sustenta numa ‘sublimação dos desejos’ e não o contrário. Ou seja, voltamos a um estágio da compreensão de nossa existência que se quer passou pelo ‘Iluminismo’ e a formação daquilo que o antropólogo jamaicano Stuart Hall, definiu como “identidade iluminista”. Responsável entre outras coisas, pela formação da ideia que não existem seres que são mais ou menos humanos, se não apenas Humanos.
Outro fator que salta aos olhos gerando o nosso “mal estar da modernidade” como sustentou Freud, vincula-se a incapacidade do nosso ‘projeto modernista’ de expandir-se enquanto movimento ideológico e político para o futebol. Fato exemplificado na realidade de que não conseguimos convencer nossos co-irmãos “Paranito e Corisco” desta necessidade. Nos limitando apenas a considerá-los incapazes, incompetentes e aqueles que estão ficando para trás neste porvir de um futuro emancipado e moderno para o futebol. Assim é possível se modernizar enquanto estamos envolto pela não-modernidade de nossos rivais mais próximos? Seria possível que tivéssemos uma “Copa Libertadores”, se nossa liberdade fosse conquistada de maneira unilateral e individualmente? Ou ainda, o projeto iluminista do século XVIII teria tornado-se paradigma das nações modernas se tivessem ficados reduzidos ao contexto da “Revolução Gloriosa” na Inglaterra ou na Revolução Francesa? Existiria um projeto de modernização das sociedades latino-americanas, se o discurso ‘humanista’ do iluminismo tivesse se restringido aos europeus? Acredito que não!
A propósito alguém se questionou se nossa modernização caminha para um horizonte que se expande a cada passo, ou se obscurece pela retórica dos discursos de vanguarda e daqueles que se colocam simbolicamente na frente do campo de batalha pela emancipação. Se no fundo estes iluminados senhores se mantém na retaguarda ou nas trincheiras seguras da logística e artilharia militar do futebol, sem ter de conhecer às dificuldades de ser um infante, seria possível nominar nossos libertadores sem que os mesmos contassem com um exército de profissionais e voluntários para confrontar os inimigos defensores do cabresto e alienação? Também acredito que não!
Antonio Gramsci foi enfático ao refutar os ímpetos vanguardista das elites políticas que defendiam o Comunismo como forma de emancipação social e política. E defendeu que “nenhuma revolução verdadeiramente orgânica, é obra de um alguém”. Todas foram conquistadas e garantidas em base a uma série de intelectuais que não estão nos gabinetes da política, se não no corpo a corpo e em todos os espaços sociais que circunda a instituição a ser revolucionada. Por isso a vitória do fascismo na Itália e Alemanha, ao invés daqueles que pretendiam construir um projeto emancipador.
Deste modo, o que foi feito para que nosso projeto de emancipação pudesse ser alcançado e visualizado como um horizonte e um futuro para todos aqueles que compartilham de condições alienantes e desiguais no futebol brasileiro? Abrimos mão da nossa cota de televisão no Campeonato Parananense para favorecer times pequenos como Toledo, Maringá, Cascavel 1 e 2, Foz do Iguaçu e outros? Ou ao contrário, revindicamos melhores soldos para nosso clube e ou, diminuímos a competição passamos a jogar com um “time alternativo” (i.e., o sub-23)? Estamos realmente na vanguarda ou na retaguarda? Ai eu não sei!
O que tenho muito claro é que nosso projeto de emancipação ainda não conseguiu se universalizar, como fez o projeto Iluminista. Não expandimos o suficiente para convencer nossos semelhantes desta necessidade. E ainda, não fomos capazes de “renovar” nossas relações e propostas de luta no universo futebolístico. Algo que não quer dizer que não estamos nos modernizando. Ao contrário, estamos sim. Mas sem conseguir nos libertar, sem conseguir renovar nossas relações com os demais. E principalmente sem nos livrarmos da tradição desigual que marca o futebol brasileiro e nos leva ao monopólio pela falta de concorrência. Ou seja, nosso projeto de modernização têm como pano de fundo a necessidade de se democratizar ao futebol? Acredito que não! E tal fato, se expressa minimante na impossibilidade de participar do fórum oficial do clube e publicar este texto lá que julgo relevante a todos os athleticanos ou athleticanistas, pelo fato de não ter condições no presente momento de me associar).
Por isso chego ao derradeiro ponto no qual quero concentrar este texto. Na incapacidade dos discursos em convencer os sujeitos a assumir o projeto modernista como uma necessidade universal e de todos os clubes de futebol que não estão no “main streams” ou “no hall” dos grandes clubes brasileiros. Algo que se reforça pelo isolamento que estamos encarando, ao não fazer parte do ‘paperview’, ao estarmos fora da mídia tradicional e sem possibilidade de acesso de muitos torcedores de renda baixa ou em condições financeiras precárias, nas dependências do nosso Joaquim Américo.
Assim concluo que a modernização do nosso amado Furacão detém as marcas de um projeto de “modernismo sem modernização” como sustentou Garcia Canclini, ao estudar a realidade cultural e política da América Latina. Temos como marca predominante de nossa modernização a “utopia de um futuro emancipado”, mas com um condicionamento tributário reduzido ao “mercado”. Temos uma ‘modernidade híbrida’, que dá forma aos “poderes oblíquos” que sinalizam para um futuro moderno e livre, mas marcado pela continuidade e tradição de desigualdade não emancipadora. Com dificuldades em se expandir, com pouca capacidade de se renovar diante da tradição excludente do futebol brasileiro.
Não podemos esquecer que o futebol é um esporte genuinamente moderno, nunca foi raiz como querem os defensores do tradicionalismo. Que sua história é e foi, marcada pelo domínio racista, machista e elitista que impedia as classes populares e os grupos subalternos de poder fazer parte da modernidade e racionalidade que este esporte tem em seu cerne. Com a retórica e a falácia da inferioridade, da subalternidade, e da não humanidade. No Brasil clubes de futebol como Grêmio, Coritiba, Guarani (que ironicamente leva o nome de um grupo étnico subalternizado pela cultura brasileira), Fluminense, Palmeiras e Cruzeiro tornaram possível a exclusão de muitos, colocando-os no outro lado da luta. Se hoje estes clubes quase não podem ser associados a um passado racista e preconceituoso, seu passado e tradição não permitem que esta memória seja esquecida por torcedores e clubes rivais e que portanto não ficam condicionadas as passado. Como peça de museu como disse Eduardo Galeano, e como ele mesmo afirmou não passava de “de um mendigo do futebol, ando pelo mundo de chapéu na mão, e nos estádios suplico: – Uma linda jogada pelo amor de Deus! E quando acontece o bom futebol, agradeço o milagre – sem me importar com o clube ou o país que o oferece”. E nisso tenho certo para E. Galeano o atual momento do nosso Athletico seria próprio de um milagre latino-americano!
Assim se atualmente temos em nosso Athletico alguns ideólogos da modernização que sustentam que o “futebol é um evento in locus que como em toda parte do mundo só é ou pode ser, contemplado ao vivo pelas classes A e B”, não temos nesta “falacia” as marcas de um elitismo próximo ao racismo eugenista que desumanizou negros e indígenas como forma de mantê-los dominados e escravos? Pode-se se falar que nossa modernização é própria daquelas que marcam “Nossa América” enquanto uma contradição latino-americana que detêm um olhar oblíquo, desforme e assim, de um ser real como Calibã? Podemos olhar para a Europa, enquanto forma ideal de vida como a de um Ariel shakespeariano e objeto da problemática latino-americanista do escritor e pensador uruguaio José Henrique Rodó?
Afinal o “futebol precisa de um Furacão” como diz o slogan recente de nossa publicidade ou de uma “Tempestade” como na obra teatral e novelesca de Shakespeare? Como ficará marcada nossa ‘vanguarda athleticana’ na história da modernização do futebol brasileiro? Seremos aqueles que defenderam as retóricas e falácias que olham para um futuro de mídias sociais, enquanto ainda temos que acompanhar nosso Athletico goleando o Vasco da Gama (que têm como feito histórico e parte de sua tradição a luta contra o racismo) através do rádio, como fizeram durante décadas nossos antepassados?
Revindico assim, com base nesta modernização “en bancarrota” como falam nossos ‘hermanos hispano-hablantes’ que notemos que nossa capacidade de entrar na modernidade, ainda é débil e dependente de forças que não podemos controlar e, que nos impede de ter a tão sonhada liberdade. Para sairmos da modernidade é necessário apenas um passo. Seja ele para frente ou para trás!
Nesta me furto a parafrasear o poeta e compositor cearense Belchior: – pois sigo sendo eu, apenas um rapaz latino-athleticano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e torcendo para um time que é visto como inferior! Por conta deste destino uma ‘hinchada’ argentina ou uruguaia, caliente e alentado o tempo inteiro, me caem bem melhor que os ‘fans’ ingleses ou estadounidense, sentados, amargos, ‘pecho frio’, sem batuque, balanço e bandeiras.
O futebol não é uma novela romântica ou uma peça de teatro de Willian Shakespeare em uma estante empoeirada de livros. É a vida cotidiana, que se liga pela existência e resistência daqueles que não estão no controle ou nos mandos do jogo. É uma das contradições nossas de cada dia. Uma contradição genuinamente latino-athleticana!!!
fontes :
https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Tempestade ;
http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1370454981_ARQUIVO_Texto-Regiane.pdf ;
https://www.terra.com.br/esportes/futebol/mendigo-do-bom-futebol-galeano-levou-a-paixao-pela-bola-a-literatura,797b1f57104bc410VgnCLD200000b1bf46d0RCRD.html ;
http://biblioteca.org.ar/libros/70738.pdf ;
http://www.cdrom.ufrgs.br/garcia/garcia.pdf ;
http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/tempestade.pdf ;
https://www.anarquista.net/wp-content/uploads/2013/03/O-Livro-dos-Abra%C3%A7os-Eduardo-Galeano.pdf ; todos acessados em 28 de abril de 2019.