O capricho dos deuses que existem
Ah, os deuses do futebol. E são caprichosos, os deuses. Intervêm em lances inesperados, no burburinho que antecede os grandes jogos, em detalhes aparentemente insignificantes, para eleger heróis, eternizá-los na memória apaixonada do torcedor, consagrar o imponderável e colorir a história com pitadas de arte. Pois somente os deuses do futebol serão capazes de explicar a jogada de Marcelo Cirino no segundo gol do Atlético na decisão da Copa do Brasil com o Inter. Naquele momento, a expressão dos gaúchos, em campo e nas cadeiras belas e encarnadas do Beira-Rio, sugeria total incapacidade de reação.
Contavam-se os minutos, os segundos restantes para o apito de sua excelência, o árbitro, e o decreto de encerramento do torneio importante. Aos 51 do segundo tempo, Marcelo Cirino parecia querer a retenção da bola na lateral do campo – o empate bastava para o Furacão. Atrás dele, vieram Edenilson e Rafael Sobis, em cerco burocrático. A previsão era de uma disputa que não alteraria o resultado da partida, que caminhava para o fim. Mas não. Inspirado sabe-se lá em quem ou em quê, o velocista de pernas compridas e ágeis deu o toque desconcertante que o livrou dos dois defensores, que abandonaram a jogada, incrédulos, abatidos. Sozinho, Marcelo teve tempo e habilidade para novo drible – a vítima, desta vez, foi um atarantado Rodrigo Lindoso – e para o passe certeiro que colocou a bola no pé de Rony, que a empurrou para o fundo da rede.
A vitória rubro-negra, mais do que merecida, foi imposição divina, como que a premiar um clube tantas vezes perdedor em outros momentos decisivos. E com um gol assim, emoldurado pelo sobrenatural, pela genialidade, pelo amor. Um gol que se incorporou para sempre à memória dos que sofremos no 18 de Setembro, uma quarta-feira nervosa, e completou o placar iniciado com o lançamento de Marco Ruben para o desvio certeiro de Léo Cittadini, no primeiro tempo, na primeira explosão de felicidade.
Para os velhos, como eu, jogada que fez lembrar a perfeição do passe de Pelé para o tiro de canhão de Carlos Alberto Torres, na final da Copa do Mundo de 1970, num lapso de encantamento que nem mesmo a amargura daquele Brasil de chumbo, cuja seleção amassaria a italiana por 4 a 1, poderia conter. Gol desnecessário para os calculistas e indispensável para os poetas, como o que fechou uma decisão de campeonato em 1982, de Washington, parceiro de Assis, após receber a bola do calcanhar de Ivair, aos 45 da etapa derradeira. Reeditava-se, então, o 4 a 1 do escrete da pátria de chuteiras, de Pelé e Carlos Alberto (e Tostão, e Jairzinho, e Clodoaldo, e Gérson, e Rivellino, e Piazza, e Félix, e Paulo Cézar Caju), agora com o Atlético da camisa de listras horizontais em preto e vermelho, que amargava doze anos de jejum. O meu time, o time dos humilhados e ofendidos, ganhava do Colorado, hoje extinto, para enfim se tornar campeão!
Sempre no desfecho dos jogos, sempre inesquecíveis (os dribles de Marcelo não me saem da cabeça), esses três gols formam a trilogia esportiva da minha breve e insignificante existência, obra dos deuses que existem e amam o futebol. Os deuses e seus caprichos. Sou grato a eles, camaradas da fé que mora em mim.