A Copa do Brasil e o estigma de M. Cirino
O ser humano tem a tendência de projetar as memórias da forma que melhor lhe convém. Há um costume de apresentar um cenário fantasioso como se correspondente a retrato fidedigno de uma experiência concreta. Trata-se de questão natural, inerente à nossa própria existência. Nas relações interpessoais, isto é até injusto. Eternizamos cenas/imagens pontuais negativas e as moldamos com o passar do tempo. E aí nos esquecemos de toda uma convivência que precede a tal situação hipotética memorizada.
No futebol, não passa diferente. Cada qual tem sua lembrança sobre o gol do Berg no Paranaense de 90, ou do Nélio naquele primeiro Atletiba da final de 98, por exemplo. Embora seja verdade que “a história só se escreve uma vez”, as pessoas a projetam de diferentes maneiras, com sua pitada de drama ou de romantismo. A visualização das imagens na televisão supre o saudosismo, mas por vezes pode ser frustrante sob a perspectiva da mentalização dos tais lances pelos torcedores.
A Copa do Brasil de 2019, como torneio futebolístico, não difere dessa lógica, em linhas gerais. Admite que o torcedor divague para descrever essa ou aquela cena da maneira que assimilou, considerando seus ideais, preferências e até seu estado de espírito no momento do registro do fato.
A particularidade para nós é que vencemos o certame. O Atlético do capitão Lucho, do matador Rúben e do excepcional Rony. Do talentoso Nikão, do brilhante Bruno, do voluntarioso Wellington e do surpreendente Cittadini. Dos jovens Léo Pereira, Bambu e Khellven, mas também dos experientes Jonathan e Márcio Azevedo. O Atlético do seguro Santos, e dos raçudos Thiago Heleno e Camacho, ausentes em boa parte do torneio. O Atlético do Marcelo Cirino.
O Atlético, afinal, de seus apaixonados torcedores e que tanto mereciam esse caneco.
Há muitos pontos marcantes nesse Atlético e em todos os fatores mais ou menos significativos que circundam esse maravilhoso título. Poderia dedicar linhas e linhas discorrendo desde a nossa grama sintética e sua relevância, por exemplo, até a bola que o Rony não deixou sair quando o Santos quis chutar pra lateral — origem da jogada do nosso primeiro gol no Beira-Rio. Por outro lado, daria pra lembrar da coca-cola a incríveis r$12,00 (ou seriam r$13,00?) que estava à venda com os ambulantes dentro do estádio.
Mas o ponto crucial é que a Copa do Brasil de 2019 acabou com uma cena mágica. A plasticidade da jogada do Marcelo Cirino e o gol incontestável do Rony deram outro ar ao título. Não fomos apenas campeões. Somos o único clube da história a vencer o Internacional no Beira-Rio em uma final de repercussão nacional. Vencemos os dois jogos. Encerramos a competição com uma pintura de gol.
É de se observar, aliás, que a importância do lance transcende o “nosso”. O gol não é mais só do Atlético. Certamente é (e será) o cartão postal dessa Copa do Brasil. Serve de brinde a todos aqueles que amam futebol. O último lance, o mais belo, e certamente o mais importante do certame.
Sob essa perspectiva, devo reconhecer que há sim uma enorme diferença nessa Copa do Brasil. E não é apenas porque a taça é do Atlético.
As lembranças e divagações, claro, existirão. Mas olhar o lance na televisão não será apenas um brinde ao saudosismo e ao resgate da magia daquele 18.9.2019. Será a confirmação de todas as narrações e histórias, feitas de variadas formas, por variadas pessoas, do lance que fechou a competição. Em relação a ele, é preciso dizer, não há como frustrar-se pela imaginação: a jogada consolida no plano concreto a utopia do mais otimista e falacioso torcedor.
Portanto, embora não tenha propositalmente adjetivado o artista mais acima, o faço aqui em tom de conclusão. A Copa do Brasil de 2019 e o nosso título se definem no último lance da competição, cujo protagonista foi o predestinado Marcelo Cirino.
Cirino não tem o brilho e nem o estilo dos meus grandes ídolos, mas (estou certo) a história que desenhou será lembrada como a de Ziquita, naquele jogo do Colorado em que a quantidade de pessoas que dizem ter presenciado o momento seria suficiente pra encher o Maracanã na época dos 200 mil lugares.
Por certo, Cirino foge à regra da injustiça antes cogitada no âmbito das relações. O estigma a ele atribuído absorve seus pecados e o coloca definitivamente na história do Atlético Paranaense.