16 dez 2020 - 21h15

Nikão

Na infância de uma criança brasileira, qualquer coisa que possa ser chutada se torna automaticamente uma bola: pedras criam gomos e quicam de maneira irregular pelo gramado esburacado (que na verdade é o asfalto), garrafas de plástico recebem chutões de tiros-de-meta imaginários e latinhas passam por entre as pernas dos garotos desavisados, iniciando uma partida fadada a terminar sem gols, mas com muita diversão – algo impensável no futebol profissional.

Maycon Vinicius Ferreira da Cruz, antes de ser Nikão, já encantava ao chutar bolas reais com sua perna esquerda desde muito cedo. Mas não pode chutar latinhas como os meninos de sua idade. Isto porque precisou começar a juntá-las pelas ruas para sobreviver. Mas as latinhas de alumínio, que eram fonte de renda para ter o que comer, também começaram a se tornar sua desgraça quando aos 12 começou a beber.

Colecionou tristezas e frustrações por muito tempo. Perdeu sua avó e seu irmão mais velho. Peregrinou pelo mundo da bola – a redonda – sempre desequilibrado pelas latinhas que não pode chutar em sua infância, mas cujos conteúdos o faziam sentir como se estivesse preenchendo, de alguma forma, os vazios deixados por sua vida de sofrimento e angústia.

Até que, um dia, Nikão decidiu que nada mais ia conseguir derrubá-lo e, já adulto, chutou as latinhas para longe, com a força da perna canhota que o fez brilhar desde muito cedo.

Desde então, defensor nenhum consegue enfrenta-lo e passar ileso. Nikão protege a bola com a mesma vontade com a qual defendeu sua vida desde cedo. Suas costas – que eram usadas por traficantes de seu bairro para apagar cigarros – viraram uma parede impossível de derrubar e sua perna esquerda se tornou leve como o alumínio das latinhas que foram sua salvação e ruína por tanto tempo.

 



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