A alma do Caldeirão do Diabo
Quando as pessoas me perguntam “quem é o Murilo?” a primeira coisa que digo é que o Murilo (ou Doc) é atleticano. Além disso, sou médico e atuo na área da Psiquiatria. Aqui, neste espaço, o intuito é conversar – de torcedor para torcedor – sobre aquilo que nos é cura, mas também comorbidade, loucura e uma licença poética: o Club Athletico Paranaense.
Achei que era um delírio meu. Poxa, logo eu… Febril (temperatura de 38,3 graus celsius); rinorreia (nariz escorrendo); mialgia intensa (dor/desconforto muscular); faringalgia (dor de garganta); vertigem (tontura); náusea; tosse seca. Insistiram na minha ida ao médico. “Como? Preciso cuidar da minha maior e principal comorbidade”. O Athletico entrava em campo.
A acachapante, irrefutável e esmagadora vitória sobre o Flamengo, da maneira como foi, fez-me duvidar, por alguns instantes, que tudo aquilo – de fato – era verdade. O Furacão jogou em ritmo de batalha. Aproximou marcações, dobrou marcações, triplicou marcações, foi ao ataque e venceu. Soube competir, o que não é o mesmo que jogar.
Meus amigos, o time carioca foi humilhado. Saiu destroçado. Completamente desnorteado. E foi tudo verdade. Não era um delírio. Os veículos de imprensa noticiavam, todos, a classificação do Athletico para mais uma final nacional. Foi só mais um sonho que vivemos acordados.
E por que o Furacão venceu? Porque foi simples. Taticamente, reconheceu suas deficiências e – com atuações seguras de Thiago Heleno (que mais uma vez colocou ordem na casa), Pedro Henrique e Hernández – minimizou problemas. A simplicidade que evoco se observa na atuação dos zagueiros. Aliás, na brilhante atuação deles e de todo esquema defensivo. Sem complicar, Valentim fechou o lado, foi feijão com arroz sem paio, sem linguiça; só bago e água. A simplicidade sempre será grande virtude. Quando o caldo quis desandar, Santos acudiu a panela, baixou o fogo.
Jornalista da ESPN disse que o Athletico sentiria o gramado do Maraca (e pensar que pagam para essa gente comentar futebol…).Time que já enfrentou Monumental, Bombonera, Campeón del Siglo nada tem a temer. E agora, as últimas e maiores disputas do ano – e duas das maiores da nossa história – chegaram. E dentro da mesma temporada, meus caros. E foi do jeito que já se alertava que poderia ser: de modo hercúleo, marcando para sempre esta trajetória.
O Furacão entra, agora, em licença-título. É momento da mais completa união de todos os rubro-negros; de crédito ilimitado ao treinador; de fé infinita no esforço dos jogadores; de crença absoluta na capacidade de gerenciamento da diretoria. Fora desse círculo virtuoso não há salvação. Vamos, espiritualmente e fisicamente, lotar a Baixada e o Mineirão. E, claro, invadir o Uruguai.
A análise da partida é irrelevante. O momento é de êxtase. Nada importa, só a classificação. Porque o Athletico joga mata-mata e mata.
Tentei imaginar a tristeza, frustração, indignação, desapontamento, decepção, desencanto e desgosto do VAR ao achar absolutamente nada, nem uma irregularidade sequer, um detalhe que olho nu não enxerga, nos lances em que Nikão mostrou que a perfeição é mero detalhe. A cada apito do árbitro o pensamento que vinha era: “pronto, pênalti pro Flamengo”.
Khellven até tentou complicar o jogo e fazer esforço para nos conceder emoções ímpares. Mas hoje não cabe falar dos erros.
Podemos falar de Zé Ivaldo. Que aula de contra-ataque, hein? Desarme, avanço, drible, trivela e bola na rede. Um espetáculo!
Podemos falar de Renato Kayzer que – como sempre – lutou. Sofreu pênalti. Sua presença foi decisiva dentro de campo. Ele e os outros bravos guerreiros fizeram o Mengão da massa, o urubuzão, perder o controle. Poderiam jogar mais dez, vinte, trinta, quarenta… cem minutos, e ainda assim não seria o suficiente para amenizar o sofrimento da nação carioca.
Podemos falar de Léo Pereira. “Ahn, Léo Pereira?”. Sim, Léo Pereira. Fez jus ao cântico que o torcedor entoava quando o zagueirão desfilava pelos lados sintéticos do planeta Futebol. Foram pelo menos duas chances claras que ele salv… digo, desperdiçou, de gol. Ídolo até quando do lado do rubro-negro do mal.
Mas deixemos para lá o tal do Malvadão. O Athletico jogou e se defendeu por música. Por poesia. Por soneto. E Nikão foi e sempre será nossa licença poética.
“Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
…
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa lhe dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure”.
Ahh, Nikão… Logo chego em ti.
E o Santos? O comentarista global fala: “normalmente o goleiro se joga e espalma esta bola”. Logo em seguida, o narrador: “por um triz ele não faz um gol antológico” (jogada de Michel). Ambos completamente equivocados. Normal? Jamais. Estamos falando de Aderbar. Por um triz? O “eixo” pode assim definir. O gol antológico que não se concretizou foi culpa, de novo, de Santos. Gigantesco. Soberano. Foram, ao menos, quatro defesas difíceis do arqueiro no jogo. Duas delas cara a cara com Bruno Henrique, quando fechou bem o ângulo; depois em chutes de dentro da área.
Pois bem. O Athletico é orgulhoso finalista da Sul-Americana e, agora, da Copa do Brasil. E o símbolo da festejada conquista recai nele: Nikão. O abençoado Nikão, que marca, assiste, acalma; cuja linguagem corporal em meio à luta anuncia o vento caloroso dos bons tempos, a névoa úmida das dificuldades. Eu queria tocá-lo só para ter a certeza de que ele é um ser humano como nós. Seu futebol tem mistério: as pernas pensam por conta própria, o pé dispara sozinho, os olhos veem os gols antes de ocorrerem.
Inclusive, já sinto saudades do agora. Saudades em ver Nikão vestindo rubro-negro, branco, preto, laranja. Até um amarelo-obra-abstrata. O meu, o seu, o nosso Nikão. O meia-atacante, o camisa onze, encarna o espírito guerreiro do Athletico Paranaense. Ele é a alma do Caldeirão do Diabo.