7 mar 2022 - 21h21

Sobretudo amor

Quando as pessoas me perguntam “quem é o Murilo?” a primeira coisa que digo é que o Murilo (ou Doc, como me chamam) é atleticano. Além disso, sou médico e atuo na área da Psiquiatria. Aqui, neste espaço, o intuito é conversar – de torcedor para torcedor – sobre aquilo que nos é cura, mas também comorbidade, loucura e uma licença poética: o Club Athletico Paranaense.

 

O Futebol faz pessoas se aproximarem. Ou, pelo menos, era o que esperávamos. Por isso, é um momento para reflexão. Necessária reflexão. Para tal, devemos estar abertos à realidade e enxergá-la em todos os fatores. Não precisávamos, absolutamente, das tantas barbáries recentes – ocorridas num intervalo tão pequeno de tempo – para nos chacoalhar, para acordarmos da letargia que nos envolve, para dar a cada coisa a real dimensão que ela tem. Se a gente perde o contexto no qual o futebol se insere – apenas um jogo, uma diversão, ou “a coisa mais importante entre as menos importantes” – abre-se a porta para o mal entrar e acaba-se destruindo aquilo que tanto amamos.

O ataque ao ônibus do Bahia deixou jogadores feridos (o arqueiro Danilo Fernandes foi parar no hospital). No mesmo dia, o Náutico divulgou imagens de van que transportava os atletas com vidros quebrados após protestos. O ônibus do Grêmio foi alvo de pedradas na chegada ao Beira-Rio (Villasanti precisou ser conduzido ao hospital e o Gre-Nal foi adiado). “Torcedores” (as aspas são fundamentais, aqui e na sequência deste texto) do Paraná invadiram o gramado e trocaram agressões com os jogadores. Cenas de violência e brutalidade tomaram todo o estádio La Corregidora, no México, no final da noite de sábado, e chocaram o mundo do futebol – a briga generalizada entre “torcedores” de Querétaro e Atlas, espalhada da arquibancada ao gramado, deixou pelo menos 26 feridos.

O torcedor (este sem aspas, o sujeito que vai para, de fato, torcer) é maltratado e humilhado, constantemente, nos estádios brasileiros. Os tumultos lamentáveis expõem uma polícia muitas vezes desaparelhada e despreparada para resguardar os direitos dos torcedores. Digo isso não com a intenção única de crítica, mas para constatar que é impossível dissociar a escalada de violência no futebol do panorama de desordem pública, social, econômica e política vivido pelo país. O esporte em si não é uma prática violenta, embora práticas de violência dentro e fora do campo aconteçam.

Confundir adversário com inimigo (e inimigo a ser abatido), competição com agressão, e concorrência com violência faz parte do código de agressividades dos grupos que se infiltram nas torcidas e que são minoritários, mas altamente violentos. As pessoas que se envolvem em episódios de violência sequer devem ser chamadas de torcedores. São, em primeiro lugar, delinquentes. Assim, devem ser afastadas do ambiente do futebol, pelo bem do esporte e dos verdadeiros apaixonados pelas cores de seus clubes. Falam em “torcida única” como solução de todo o caos. Amigo e amiga, isso tira o sabor do futebol; é a antítese e a negação do esporte que desde a origem trabalha com torcidas opostas. Significaria uma derrota da civilidade. O ato de proibição dos visitantes seria como o médico que, para curar a doença que aflige um paciente, mata o próprio humano, portador da doença. Torcer não deve ser sinônimo de ódio ao adversário. O esporte foi criado para disputas sadias e o congraçamento.

É importante ter os ídolos próximos. Isso é história. E macular a história da maneira como fazem é uma autofagia da própria instituição. O ir e vir do Futebol é natural. O que não é natural é a desconsideração com o ser humano. A ausência do diálogo é o primeiro passo para a guerra – e nem precisamos do futebol para ver isso, basta ligarmos a televisão, lamentavelmente.

Talvez seja difícil presenciar novamente uma imagem como a do dia 15 de dezembro de 2021 num estádio brasileiro. Provavelmente é uma exceção, não uma moda ao futuro. O próprio contexto influenciou a forma como o torcedor do Furacão reverteu a frustração em dedicação naquela noite, na Arena da Baixada. É uma cena que fica e que parece até surreal, num futebol brasileiro que tantas vezes viu a revolta irracional em derrotas como aquela. Muito mais elevada é a lição dos rubro-negros, maiores ao seu time que qualquer resultado. Foi o inverso do que na atualidade vemos e a imagem do clube se engrandeceu pelo comportamento da torcida.

Mas ressalto aqui: é muito importante, fundamental, dentro desta conversa, lembrarmos que a imensa maioria das pessoas vive de maneira justa e honesta. A imensa maioria vai aos estádios em paz. A imensa maioria é “gente do bem”. Do contrário, nossa existência no mundo, como viventes, poderia não ser possível.

A torcida – composta por esta “gente do bem” – é o trunfo maior de qualquer clube. É o amor cristalino, a entrega desinteressada; ela não discute premiações e não recebe prêmios; ela é a doação em estado puro, que aquece corações, alavanca performances, garante placares impossíveis e muda a história. E eu não joguei, eu só acreditei e torci. No futebol em geral, se for pensar, tem tanta coisa que acontece que se não fosse o sentimento de amor muitos de nós já teríamos largado tudo. Mas a gente ama o Athletico, ama o futebol, por isso não tem como desistir.

O futebol pode ser usado para o bem ou para o mal. É uma escolha pessoal. Qual é o meu e o seu relacionamento verdadeiro com o esporte? Sim, é para refletirmos mesmo. No fundo, as pessoas acabam sucumbindo a uma corrupção individual, na qual abandonam seus valores e aspirações mais íntimas em função das imposições da própria dinâmica social atual ou da massa da qual fazem parte; esquecem ou achatam, assim, o desejo de bem comum e expressam um individualismo exacerbado.

Parece-nos que o sujeito na atualidade, sob a égide de um supereu tirânico, é convocado a sentir prazer a qualquer preço, fato esse que tem deixado aberto o caminho para a manifestação de atos violentos contra si e/ou contra o próximo. Desta forma, o reconhecimento da diferença que daria suporte a uma relação entre o sujeito e o próximo fica comprometido.

Recorro a Freud, aqui: as relações mantidas a partir da negação do outro desejante lançam um convite a uma apropriação do corpo do outro para usufruto atendendo assim ao pulsional mortífero que clama por uma realização plena, uma satisfação absoluta. Neste sentido, matar, roubar, “não sendo amigo meu” vale. Podemos falar que neste contexto há poucos resquícios de um sujeito, pois o que se apresenta são passagens ao ato no lugar que deveria advir um sujeito. Estamos, assim, diante de pessoas que almejam anular a falta, a incompletude, a castração. A eliminação do diferente é, então, desejável, sendo a violência uma saída plausível.

Tentemos e devemos melhorar nossa relação com o futebol em si. É preciso saber dosar e equilibrar, a nosso favor, os momentos de paixão e amor. Afinal, no fim das contas, o objetivo dos jogadores dentro de campo – mesmo que não atingido – é o mesmo que ansiamos, fora dele: vencer. E o nosso objetivo primordial, principal, essencial, original, torcedor, qual é? É torcer. Com dignidade, respeito e amor. Sobretudo amor.



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