21 mar 2022 - 21h51

Nunca mais!

Quando as pessoas me perguntam “quem é o Murilo?” a primeira coisa que digo é que o Murilo (ou Doc, como me chamam) é atleticano. Além disso, sou médico e atuo na área da Psiquiatria. Aqui, neste espaço, o intuito é conversar – de torcedor para torcedor – sobre aquilo que nos é cura, mas também comorbidade, loucura e uma licença poética: o Club Athletico Paranaense.

 

O futebol tem a graciosa virtude de unir culturas e povos, sem distinção de credo, raça ou origem. A linguagem da bola é universal. Contudo, os episódios de discriminação racial que ocorrem recorrentemente nas partidas de futebol em território brasileiro demonstram, de forma inconteste, que o preconceito é uma chaga que envergonha o nosso país e que precisa ser erradicada de uma vez por todas.

Constantemente pintada como tolerante, a sociedade brasileira, na verdade, mostra cada vez mais uma face obscura e preconceituosa. O esporte não é exceção e carrega um agravante: muitas vezes, crimes cometidos nas arquibancadas são minimizados e tratados como mera “brincadeira entre torcedores”.

É crime praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Mas isso todo mundo já sabe. Ou deveria saber. A reflexão, aqui, não é sobre a prática de crimes ou sobre os direitos já garantidos e adquiridos.

Diz na Bíblia que Noé amaldiçoou seu filho Cam e o condenou a ser escravo dos irmãos. Uma outra tradição afirma que Cam foi para África e este argumento foi reinventado como justificativa da escravidão moderna. Pelo cruzamento com brancos, a “maldição” da pele escura seria superada. Esse é parte do DNA do racismo brasileiro.

O Brasil é um palco de ódio e de polarização, como em muitas partes do mundo. A diferença é que nosso imaginário era de paz e harmonia, concórdia e cordialidade. Removida a fina pátina social, encontramos dores agudas e muita raiva. E o futebol, mais uma vez, acaba sendo vítima e meio de mais cenas lamentáveis.

O preconceito é uma maneira de existir no mundo; é um lar, um suporte, uma forma de sobreviver e uma linguagem; é, sobretudo, uma zona de conforto. Sem ele, alguns precisariam refletir sobre sua existência e seu propósito. Talvez sentissem que não poderiam mais existir. Talvez se questionassem mais.

Pedir a alguém que abandone seu preconceito e os comentários maliciosos é pedir que esta pessoa deixe, em parte, de ser. A reação de um preconceituoso ao questionamento do seu preconceito é, em geral, muito exaltada – sua irritação não é apenas narciso contrariado, mas apego a um universo que ameaça ruir. Não é uma reação só de discordância, mas de mobilização pela sobrevivência do mundo como era até então.

Exigir que um racista pense e atue de forma distinta é pedir que ele recomece seu mundo de outro patamar. Naturalmente, a resistência é enorme. Uma ideia preconceituosa é uma Bastilha: sua queda simboliza muita coisa. Mudar uma cabeça é como cortar uma – a guilhotina da razão é pesada e seu alvo vai espernear.

Ter preconceito é ter uma falha de visão, um procedimento não científico, porque cria opinião sem conhecimento; elabora afirmativas carentes de objetividade; julga sem ver e afirma sem conhecer. Ele é sempre burro (mas pode ser compartilhado por gênios e estúpidos). Racismo é a expressão máxima da ignorância.

Além de ser uma limitação mental, é uma demonstração de medo. A explicação psicanalítica revela muito sobre o indivíduo: eu sempre ataco aquilo que desejo (que compõe meu universo narcísico); ou aquilo que eu temo. Pelo silêncio ou por oposição, o preconceituoso fala muito de si também. No momento em que eu apenas uso o rótulo, perco a chance de ver engenho e arte.

Educar é um esforço. Funciona pela indicação direta e pelo exemplo, este último o mais poderoso professor já inventado. A vulgaridade e o preconceito irmanam sofisticados salões burgueses e bares populares. Variam os atores, permanece o mesmo espírito tosco. Atrás da grosseria esconde-se alguém com duplo defeito: tem medo do mundo e dele se defende com as patas erguidas. Acima de tudo, o ser grosseiro tem dificuldade em compartilhar a alegria do convívio pois vive o isolamento pleno de temores. Cortesia e etiqueta ajudam a dar alguns passos na arte da felicidade. Atrás de alguém sem noção social, existe um ser que padece e ataca para encontrar um paliativo a sua dor.

Contra a vingança pessoal surge a lei acima das passionalidades individuais ou grupais. A lei existe para ponderar mais do que a “vendettafamiliar”. O sentimento de vingança é compreensível em cada indivíduo, a sociedade organizada em torno da lei surge para que eu ou qualquer um não tomemos o poder de polícia nas mãos. Sem isso, teremos a barbárie absoluta.

Se quisermos transformar uma cultura de violência em uma cultura de paz precisaremos ter muita resiliência. E que mais do que tolerar, é preciso compreender e respeitar. Começa pela compaixão, pela capacidade de sentir com os outros e reconhecer todos como seres humanos. Além disso, o conhecimento de si ajuda a não transferir, automaticamente, minhas frustrações para outros campos, como trânsito, redes sociais e arquibancadas de estádios de futebol.

Cabem aos operadores do direito desportivo a coragem de aplicar as penas previstas no Código Brasileiro de Justiça Desportiva e não serem omissos e coniventes com atitudes criminosas e que, portanto, devem ser banidas do futebol brasileiro. Os clubes também têm suas responsabilidades: muitas vezes o que fazem são manifestações no dia 20 de novembro, dia da Consciência Negra. Só isso. Os casos de racismo aumentam, as punições, não. Assim, o racista fica tranquilo de ir ao estádio, cometer o crime e sair impune. Neste sentido, o futebol pode ocupar um papel social importante na tentativa de dar um basta no racismo e ensinar novos valores.

Racismo não é divergência, racismo é crime, como pedofilia ou violência contra as mulheres. A divergência é saudável no limite da lei e da ética. Racismo é violação constitucional e não pode ser tolerado. Não existe debate com racista, não existe um “outro lado”. O bárbaro atual é o que não admite a existência biográfica do outro. Racistas são bárbaros.

Dois judeus famosos advertiram sobre a ambiguidade das pessoas que se acham virtuosas – Jesus e Freud. O ódio em nome do bem é o pior de todos: ele destrói com mais ênfase porque se acredita protetor dos valores éticos mais elevados. O lema da Inquisição era “Misericórdia e Justiça”. Os campos de concentração nazistas exaltavam o trabalho no portão. O ódio virtuoso é muito perigoso, porque cega com mais facilidade. O mal maior é sempre tentar destruir a existência do outro, porque vida é o valor supremo.

Ressalto o importante desenrolar dos acontecimentos, ontem, na Arena da Baixada, envolvendo o jogador Samuel Santos, do Londrina: a partida foi interrompida pelo árbitro, o torcedor foi imediatamente identificado, removido do estádio e conduzido à delegacia. Protocolar. Exemplar. Há de ser assim.

Felizmente, todos mudamos e a sociedade acompanha este processo. O que antes era natural hoje já não mais o é. Não pode ser visto como normal ou aceitável.

Ressalto aqui que toda vida importa. Mas algumas estão mais em risco do que outras. Ter mais melanina virou fator de risco, comorbidade. O preconceito mata, o racismo mata e a violência mata. Sempre importante lembrar o risco do cultivo do ódio. O racismo é um câncer terrível para o qual devemos dizer “nunca mais!”.



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