Clube da Raça: a popularização do futebol em Curitiba e o surgimento da rivalidade
O futebol encontrou em Curitiba um local propício para se tornar uma paixão do povo. No início do século XX, a cidade estava em franco crescimento. A urbanização promoveu uma série de melhorias nas redes de água e esgoto e calçamento de vias.
Foi neste contexto que, em 1903, um fato marcou a vida dos paranaenses: a chegada da primeira bola de futebol, acompanhada por um precioso livro de instruções, nas mãos do ilustre Dr. Victor Ferreira do Amaral, médico renomado e político.
Este evento, mais do que um simples marco histórico, sinalizou o surgimento de uma cultura esportiva que, com o passar dos anos, viria a florescer em toda a região do Paraná, a exemplo do fenômeno que se passou também em outras partes do Brasil.
Os primeiros campos
Ao longo das décadas seguintes, mais bolas de futebol desembarcaram no estado, alimentando a paixão pelo esporte bretão não apenas nas escolas, mas também nos corações e mentes daqueles que se reuniam em locais icônicos da cidade para praticá-lo.
Praça Osório, Praça Carlos Gomes, arredores do Colégio Estadual e ao longo da rua Marechal Floriano Peixoto, nas proximidades do atual Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz, tornaram-se palcos históricos, testemunhando a gestação de uma comunidade unida pela paixão pelo futebol.
Os primeiros times
Foi nesse contexto que, a partir de 1909, começaram a surgir os primeiros times de futebol no Paraná. Em 1915, os campeonatos e torneios começaram a ser organizados de forma mais estruturada, marcando o amadurecimento do esporte na região.
Não há relatos de rivalidades intensas nesse período inicial. Mesmo o domínio esportivo do Britânia, que conquistou títulos de forma consecutiva entre 1918 e 1923, não gerou forte oposição das demais agremiações.
Uma possível explicação para a convivência pacífica é o menor número de torcedores. Outro fator é o clima de fraternidade entre os adeptos do novo esporte.
As maiores torcidas
No ano de 1921, um curioso concurso foi realizado para determinar qual time conquistava o coração dos curitibanos.
Os cidadãos foram convidados a votar em seu time preferido – e só valia um voto por pessoa. Os resultados, revelados após a contagem dos votos depositados em uma urna estrategicamente colocada nas portas do cine teatro Mignon e Palácio, mostraram a hegemonia da capital:
- América: 14.107 votos
- Internacional: 13.503 votos
- Coritiba: 7.971 votos
- Britânia: 5.324 votos
- Palestra Itália: 2.967 votos
- Esperança: 1.673 votos
- Savóia Agua Verde: 990 votos
A fundação do Club Athletico Paranaense
Quase três anos após essa consulta popular, em 1924, surgiu um novo protagonista no cenário futebolístico paranaense: o “Club Athletico Paranaense”, uma fusão dos clubes-irmãos Internacional e América.
A nova agremiação apresentou-se com uma identidade visual marcante: camisas listradas horizontalmente em preto (Internacional) e vermelho (América), calções brancos e meias pretas com detalhes em vermelho, adornados por um distintivo ostentado orgulhosamente no peito, em letras góticas.
O novo clube rapidamente capturou a atenção do público. Já em seu primeiro ano de existência, conquistou o título paranaense de 1925, demonstrando sua promessa como força emergente no panorama esportivo regional.
O Atletiba de três árbitros: nasce uma rivalidade?
O ano de 1926 trouxe consigo um episódio que evidenciou as tensões latentes no cenário futebolístico curitibano. Em um confronto entre Athletico e Coritiba, durante o segundo turno do campeonato, as emoções transbordaram de tal forma que o jogo se transformou em uma verdadeira saga.
Segundo relatos do jornal O Dia, o Coritiba foi beneficiado no jogo do primeiro turno. O árbitro Maximino Zanon assinalou gol num lance em que a bola não cruzou a linha da meta. Isso gerou grande revolta de jogadores e torcedores.
O confronto seguinte entre os clubes foi uma verdadeira “tourada sem toureiros”, para usar a expressão adotada pelo O Dia. Maximino Zanon foi novamente escalado para apitar, o que gerou uma violenta revolta do público. Ofendido com os xingamentos, ele se retirou do campo.
Orlando Levoratto assumiu o apito, mas não melhorou o cenário. Suas decisões contestáveis, inclusive autorizando um gol impedido do Coritiba, inflamaram ainda mais os ânimos. Ele também abandonou o ofício.
Finalmente, um terceiro árbitro, Moacir Gonçalves, assumiu a difícil tarefa de conduzir a partida até o seu desfecho, que terminou em um empate por 2 a 2. Uma partida, três árbitros, e um turbilhão de emoções que ecoaram por muito tempo nos anais do futebol local.
Ecos da rivalidade
No mesmo ano, a dupla Athletico e Coritiba uniu forças para enfrentar a Seleção Paulista em um confronto que, lamentavelmente, resultou em uma sonora derrota por 9 a 2. As acusações de incompetência voaram de ambos os lados, deixando um amargo sabor de frustração no ar.
A falta de fair play
Entretanto, foi em 1929 que a rivalidade entre Athletico e Coritiba alcançou seu ápice, com um episódio que ficaria gravado na memória dos aficionados pelo esporte.
Durante uma partida acirrada no Parque da Graciosa, a falta de fair play de Staco, do Coritiba, levou à indignação da equipe rubro-negra. Fingindo não ouvir a marcação de uma falta no goleiro Alberto, ele seguiu na jogada e fez o gol.
As reclamações dos atleticanos levaram a uma resposta dramática do Coritiba, que abandonou o campo de jogo.
Surge o Clube da Raça
No entanto, foi somente em 1933 que a rivalidade entre os dois clubes se tornou definitiva. Em um confronto marcado por uma epidemia que assolava os jogadores do Athletico, a diretoria rubro-negra solicitou o adiamento da partida.
Contudo, os dirigentes do Coritiba foram inflexíveis e recusaram o pedido, confiantes em uma vitória fácil.
O que não esperavam era o desdobramento surpreendente: os atleticanos, munidos apenas de sua determinação e garra, superaram as adversidades físicas e venceram por 2 a 1, com gols de Rosa e Marreco. Esse jogo entrou para a história como o Atletiba da Gripe.
O desempenho heroico do Athletico ecoou pela imprensa, que passou a chamá-lo de “Clube da Raça”. Assim, instalou-se uma rivalidade contra o Coritiba e o grito de “RAÇA” ressoou nos estádios brasileiros, inspirando equipes e torcedores até os dias atuais.
A ilustração da capa
Não localizamos imagens desse célebre Atletiba da Gripe. Com base na descrição do jogo e em outros documentos históricos da época, a artista Raíssa Silvero concebeu a ilustração da capa dessa matéria, mostrando a luta dos jogadores atleticanos e a decepção dos atletas do Coritiba com a derrota.
Pesquisa: Jefferson Gabarado. Redação: Jefferson Gabardo e Marçal Justen Neto