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21 jan 2004 - 13h10

São Judas Tadeu não é atleticano

Amigos, o futebol é muito mais que o futebol; o futebol é a metáfora do mundo. Aqueles que ousam reduzir o rude esporte bretão a apenas um esporte estão redondamente enganados, o futebol não admite redução, ele é grande, envolvente, cheio de significados e pleno de mistérios.

Entender o mundo não é tarefa fácil, principalmente esse nosso mundo recheado de interesses, de violências, de injustiças e de desigualdades. Por isso, interpretar o mundo através do futebol nos facilita as coisas.

Em vez de exércitos armados, temos times. As bandeiras dos países são as flâmulas dos clubes, os uniformes de guerra são as camisetas, as posições estratégicas não são tomadas nas trincheiras e sim nos setores do campo e os generais são representados pelos treinadores que comandam as batalhas. Mas de resto, a guerra é a mesma.

E como costuma ocorrer em toda guerra, há o Deus de todas as batalhas, esse Deus que cada exército acredita estar do seu lado, que acredita proteger para sempre as colunas vitoriosas. O futebol é grande e não admite redução, eis aqui uma grande verdade.

Mas se o Deus de todas as batalhas é único, como desequilibrar o jogo em favor deste ou daquele time? Pois bem, deste dilema é que nasce a idéia Rodrigueana do Deus particular, do Deus de cada um que, uma vez invocado, faria a sorte pender para quem no Deus pessoal acreditasse.

Segundo Nelson Rodrigues, no equilibrado futebol carioca das décadas de 50 e 60, quem decidia os jogos era o Deus particular dos dirigentes, dos jogadores e dos torcedores. Nelson creditou inúmeras vitórias botafoguenses ao Deus de Carlito Rocha, na época presidente do time da estrela solitária. E como o futebol sempre foi o palco maior do misticismo nacional, como duvidar desse Deus pessoal e vitorioso?

Nós torcedores brasileiros somos, antes de tudo, uns místicos, somos, antes de mais nada, uns supersticiosos, e assim é o futebol. Dizia o Nelson Rodrigues que o brasileiro não existe sem a sua medalhinha de pescoço e, até aí, não se pode negar, todos nós temos lá nossas crenças e mandingas para fazer do nosso time o vencedor de todas as batalhas.

Pois bem, disse muito e ainda não entrei na historinha de hoje, mas vamos a ela.

Era o ano de 1989 e o campeonato brasileiro transcorria complicadíssimo para o nosso querido Furacão. Numa certa noite de quarta-feira, o Atlético iria enfrentar o Corinthians pela última rodada da primeira fase do Nacional e precisava vencer para se manter na primeira divisão e escapar do temido Torneio da Morte.

Esse Torneio da Morte seria um hexagonal que definiria as duas equipes que permaneceriam na série A em 1990 e apontaria as quatro equipes rebaixadas para a série B.

Entretanto, o Torneio da Morte daquele ano, contou com apenas cinco clubes posto que o time verde, aquela agremiação que está enterrada perto do Cemitério Municipal de Curitiba, fugiu do jogo contra o Santos e levou uma bela cutucada da caneta do Ricardo Teixeira, indo parar diretamente na Segundona, lugar de onde jamais deveria ter saído, frise-se.

Mas o fato é que o jogo seria naquela quarta-feira e prometia ser dos mais encardidos até porque nosso Furacão não se encontrava bem.

Eu estava preocupado desde a manhã daquele dia e começava a lembrar das teorias do Nelson Rodrigues e de seu Deus pessoal, e eu tinha de fazer algo pelo Atlético, eu tinha de encontrar meu Deus particular e levá-lo ao estádio do Pinheirão para ganhar do Corinthians e ficar na série A. Mas onde achar um Deus pessoal faltando poucas horas para o jogo decisivo?

Não tive dúvidas: saí do meu quarto em direção ao quarto dos meus pais. Lá, minha mãe mantinha uma estante repleta de Santos, e se acaso eu retirasse uma das imagens ela nem notaria a falta.

Parei diante das imagens e comecei a escolher qual dos Santos eu levaria ao Pinheirão, qual dos Santos eu transformaria em meu Deus pessoal, no Deus de todas as minhas batalhas.

O primeiro que vi foi o São Jorge e esse eu descartei de cara, pois era o padroeiro do adversário. Nem a pau eu levaria um Santo corinthiano para o Pinheirão, passei adiante.

São Francisco de Assis, também não. Sei lá, achei pacato demais, bonzinho demais para a ocasião, descartei.

Santo Antônio, também não quis. Era Santo casamenteiro e casamento e futebol não combinam, foi o que pensei ao me lembrar que o casamento do meu tio quase tinha naufragado por causa do futebol. Era mais ou menos assim que acontecia: minha tia queria ir ao shopping, meu tio queria ir ao estádio. Minha tia queria ver a novela, meu tio queria a televisão ligada no futebol, e eram tantas as diferenças que o casamento quase ruiu. Definitivamente, Santo Antônio não dava.

E o tempo estava passando e nada de eu achar o Santo ideal para levar. Até que dei de cara com São Judas Tadeu. Meus amigos, estava resolvido o problema: São Judas Tadeu era o escolhido, por sua barba espessa, por sua lança militar, por sua cara de Santo guerreiro, forte, ideal para a ocasião.

Não hesitei: passei a mão na imagem de São Judas Tadeu, vesti a minha camisa Rubro-Negra, peguei alguns trocados e rumei ao Pinheirão.

No caminho fui pensando: se São Judas Tadeu está com o meu Furacão, ninguém estará contra o Atlético, e a gente ainda fica na primeira divisão.

Desci do ônibus em frente ao estádio, onde uma multidão se formava nas filas de bilheterias e de entrada. Comprei meu ingresso e logo me dirigi ao portão de acesso, eu e o São Judas Tadeu, é claro.

Naquele portão a PM caprichava nos procedimentos de revista. Queriam ver tudo, apalpar todos e evitar a entrada de objetos que pudessem servir como armas dentro do Pinheirão.

Na minha vez de ser revistado, o soldado inspecionou meu corpo em busca de pilhas, metais, bolas de gude ou sei lá que objetos nocivos ele procurava, mas não achou nada. Eu estava quase passando pela roleta quando escutei a voz de censura:

– Ô garoto, e esse Santo aí na sua mão?
– É o São Judas Tadeu! tentei argumentar.
– Você passa, o Santo fica!
– Mas, seu guarda, se eu que sou pecador passei na sua revista, como é que o Senhor pode querer barrar um Santo? Ele é Santo, seu guarda e Santo não precisa ser revistado, Santo é sujeito acima de qualquer suspeita!
– Você passa, o Santo fica, e “ordens é ordens”!
– Mas, doutor guarda, veja a minha situação: o Atlético precisa ganhar de qualquer jeito e o Santo é que pode dar uma mãozinha, libera o São Judas pelo menos no primeiro tempo!

Mas não teve solução: o guarda me liberou, mas segurou o São Judas na salinha da PM que ficava na entrada do Pinheirão.

Depois desse pequeno mal entendido, o jogo foi iniciado. O Atlético estava nervoso em campo, atabalhoado, atacando às cegas, expondo sua vulnerável defesa e, para complicar, o meu Deus pessoal estava trancado na salinha da PM e eu ali, quase tendo um enfarto, tentava vencer aquele jogo mesmo desfalcado do meu Deus de todas as batalhas.

E o jogo seguia encardido. O Atlético martelava, martelava e nada. A equipe era fraca, mas obstinada, era briosa, mas tinha o futebol curto e a derrota parecia um grande fantasma que envolvia a todos naquele lúgubre Pinheirão. E o São Judas, a essa hora, já devia estar depondo na sala da Polícia e, por isso mesmo, não podia fazer nada.

De repente aconteceu o pior: gol do Corinthians e o Pinheirão inteiro se calou numa irmandade de torcedores sofridos e sem esperanças. Não agüentei aquilo tudo. Saí da arquibancada direto para a salinha da PM.

Lá chegando, encontrei dois soldados discutindo qual deles escoltaria o time do Corinthians depois do jogo, indo dentro do ônibus mosqueteiro. Sem paciência, interpelei a dupla:

– Ô, meus grandes, o negócio é o seguinte: o Furacão está perdendo o jogo e eu quero levar o meu São Judas Tadeu para a arquibancada para dar uma força, é possível?
– Dá logo o Santo para esse xarope, porque senão ele não vai largar do nosso pé! ponderou um dos soldados ao ver que eu estava decidido a levar o Santo de qualquer jeito.
– Olha aqui, piazinho, você vai levar o Santo, mas se der alguma alteração você vai parar na delegacia, com Santo e tudo e nós vamos te enquadrar, ouviu? Agora pega o Santo e risca o chão, que quem gosta de guri como você é a Febem, está entendendo? Some, some daqui! ordenou o guarda que era simpático feito a encarnação do Adolf Hitler.

De posse do São Judas Tadeu, eu corri até a arquibancada e fiquei lá, sofrendo e rezando, e nada de o Atlético empatar ou virar aquele prélio.

Deu trinta do segundo tempo, deu trinta e cinco, quarenta e dois, quarenta e quatro, deu quarenta e cinco, o juiz acrescentou mais três minutos, até que tudo se consumou: Corinthians um a zero, e o Atlético seguiria para o Torneio da Morte, de onde não escaparia com vida naquela temporada.

Na saída do estádio eu me deixei fluir junto à multidão. De cabeça baixa, com passos lentos e com o Santo debaixo do braço, eu caminhei tristonho até o ponto de ônibus e, uma hora depois, cheguei em casa desolado, derrotado, sem esperança e nem quis falar com ninguém.

Tive apenas a preocupação de devolver a imagem de São Judas Tadeu à prateleira de Santos da minha Santa mãezinha, e coloquei-o no exato local em que tinha lhe retirado: entre Santo Expedito e a imagem de São Rafael Arcanjo. E fui dormir, ou tentar dormir.

Lá pelas três horas da manhã eu ouvi um estrondo vindo do quarto da minha mãe. Assustado, fui lá ver o que tinha acontecido e me deparei com a imagem de São Judas Tadeu caída no chão, e percebi que a cabeça do Santo tinha quebrado e estava a uns dois metros do corpo dele.

Abaixei-me para “socorrer” o Santo quanto ouvi uma voz que vinha da prateleira:

– Rafael, deixa o Judas Tadeu aí mesmo!
– Quem é que está falando?
– Sou eu!
– Eu quem?
– Eu aqui, ó! O Arcanjo Rafael, aqui em cima, não está vendo?
– Mas e você fala, é?
– Ué, e por que não falaria?
– Sei lá, eu achei que você fosse como o São Judas Tadeu, que não fala!
– Mas quem disse a você que ele não fala?
– Ué, eu acabei de vir com ele do Pinheirão e nós não trocamos uma palavra sequer!
– É que ele não manja nada de Atlético Paranaense, Rafael! O Judas Tadeu é padroeiro do Flamengo, do Flamengo, ouviu?
– Mas e por que ele caiu da prateleira?
– O de sempre: discutiu com o Jorge sobre quem teria a maior torcida do Brasil e, sabe como é, né, o Jorge se esquentou, deu um chega pra lá no Judas Tadeu e ele foi para o chão e deu nisso aí. Uma vergonha! Mas se você não tivesse chegado tão rápido nem perceberia. É que a cabeça dos Santos grudam rapidinho e daí é só voltar à prateleira e recomeçar a sessão mesa redonda celestial.
– Mas e você, Arcanjo Rafael, torce para algum time?
– Ah, meu Deus, Santa ingenuidade! E você acha que o teu nome é Rafael por acaso? Por coincidência? Eu sou atleticano e dos mais fanáticos. E digo mais: se você me tivesse levado ao Pinheirão a coisa tinha sido diferente, ah, tinha!

E foi assim, amigos, que eu descobri duas verdades: São Judas Tadeu não é atleticano e os Santos não são tão Santos assim!

E quem quiser que conte outra!



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