A lente da verdade
João Carlos, sob o cúmulo da indignação, não agüentava mais. Quase em suplício, decidiu ir ao terreiro. Lá mesmo onde sempre fora bem tratado, quando buscava apenas equilíbrio nos passes que o cavalo lhe dava. Mas naquele dia o mote era diferente: precisava de uma luz, que a ele ainda não tinha chegado. Quando adentrou ao gabinete, percebeu que a entidade ali baixada era outra, que não seu velho amigo Tranca Rua de sempre:
-Olhe para aquela lente, a lente da verdade e diz pra mim, meu amor… diga realmente o que você está vendo? indagou-lhe Clodovil Hernandes, espirituoso ser desencarnado que resolvera voltar e ajudar os mortais aqui sobreviventes.
-Bem… vejo uma espécie de… de entrevista. Um balcão, duas pessoas de terno e gravata, microfones, vozes ao fundo. Agora um sujeito de óculos e training… quase não mexe a boca, parece que está com um abcesso dento alveolar agudo/fase evoluída. Acho que os reconheço. balbuciou João Carlos, com certa vergonha em afirmar que os mesmos eram os representantes de seu Clube do coração.
-Então descruze as pernas e diga lá meu querido… estique os braços e relaxe gostoso… inspire fundo meu amor… novamente: agora, pós relax, diga realmente o que você está vendo?
[Olho para o presidente e o que vejo? À primeira vista, a ingenuidade de uma criança. A traquinagem de um piá de prédio. A displicência de um adolescente. A inexperiência de um jovem. O auto-engano de um adulto. Por fim, a avareza senil.Olho para o outro presidente e o que vejo? À primeira vista, o medo de uma criança. A vergonha de um piá de prédio. A timidez de um adolescente. O desdém de um jovem. A insegurança de um adulto. Por fim, o silêncio senil.
Olho para o treinador e o que vejo? À primeira vista, a ilusão de uma criança. A mentira de um piá de prédio. A alienação de um adolescente. A perdição de um jovem. A indiferença de um adulto. Por fim, a amnésia senil.]
-Muito bem! Entenda minha flor… uma criança pode ser ingênua, medrosa ou fantasiosa. Um piá de prédio pode ser traquinas, envergonhado ou mentiroso. Um adolescente pode ser displicente, tímido ou alienado. Um jovem pode ser inexperiente, desdenhoso ou perdido. Um adulto pode ser auto-enganado, inseguro ou indiferente. E um idoso pode ser avarento, calado ou desmemoriado. Coisas tipicamente próprias da natureza, respectivas às fases da vida de alguma pessoa normal. Que às vezes truPICA, não é mesmo? explicando holisticamente, Pai Clô.
-Pois é justamente isto que eles nos TRANSMITEM. concluiu João Carlos, sentindo um pouco mais de luz no seu pensamento.
-Claro meu amor, porque aquilo que sai para fora tem que estar por dentro. E estas observações não se limitam aos nossos olhares. Elas são tomadas daquilo que a gente SENTE QUE VEM DELES. A percepção é formada em nossa consciência, querido! Quanto às conseqüências disto, tststs…é porque cada um dá o que tem, óh-óh-óh-óh!(risadinha) Pai Clô, desfilando sabedoria.
-Mas nos cargos que estes sujeitos ocupam no comando do Clube Atlético Paranaense, não há lugar para tais características! Por que diabos isto perdura há 5 anos? Quem é capaz de mantê-los lá, mesmo vendo que não há resultado algum?
-Óh-Óh-Óh-Óh (risadinha 2)… para que tanta revolta, meu bem? Eles não chegaram lá sozinhos, alguém os colocou! Não é nem questão de incapacidade, é sim de incompetência. Tirá-los, vai dar um TRABALHO muito grande…
-Pois é seu ClÔ, eu já pago 50 pau por mês, penso que estou contribuindo à minha maneira. Entrei ontem como torcedor, me deram carteirinha de sócio e me transformaram num cliente. Hoje me consideram um contribuinte! De sócio-torcedor passei a pagador de impostos! Só me restou o DEVER de pagar, sem direito algum. Agora, se eu atrasar, vendem meu lugar. JC, cabisbaixo com a mudança de tratamento para com parte da torcida, outrora clamada ao mutirão da virada. E onde estaria o restante, a outra parte da torcida?
JC remeteu-se à sua adolescência. Ia aos jogos do Atlético a pé levando seu bandeiraço hasteado, junto com o porteiro de seu prédio, seu Edu. Edu carregava um enorme rádio 3×1 dentro de uma gamela cheia de amendoim torrado para vender no 1º tempo e no intervalo. Só assistia o segundo tempo. Por onde andaria hoje seu Edu? E os outros Edus da vida? Ah, eles têm rádio, ainda…
Pai Clô percebeu que JC divagava, então:
-Vâmu cabá quessi negócio! Tóma, mizifio… pegue este charutão aqui, bota os nómi do trio e dos jogador que tu não gosta na meia do pé esquerdo, vai numa encruzilhada qualquer do Atuba, acende e chama o Sete-encruza: repete 10 vezes os nómi deles e dos malandrage, vira a cabeça pra lua e faz a oração que o Pai tá mandando. Charuto queimou, joga pro norte. Bença, tchau e chama o próximo.
-Obrigado, Pai Clô. Até. e JC vazou do terreiro. Passou no shopping e comprou uma pantufa 4 vezes maior que seu pé, para caber a lista DA DERROTA, que um dia se intitulou lista da vitória. Na encruzilhada, cumpriu mais um dever, sentindo a FORÇA da oração. E com MUITO RESPEITO:
[ORAÇÃO AO SETE ENCRUZILHADASSaravá Santo Ântonio de Pemba!
Saravá à força do Sete!
Saravá à todos os Exus!
Ajoelhado aos teus pés, estou rogando que me escute no sopro dos sete ventos, meu grande Exú Sete Encruzilhadas.
Com a força do teu garfo que carregas nas costas e da cruz do teu peito, eu humildemente peço que tenhas vidência das dores que trago no peito aflito.
Sete Encruzilhadas Exú dos sete caminhos, senhor rei das Sete Encruzilhadas de fé, sepulte nas sete catacumbas os nossos problemas e tristezas.
És um lindo homem, um cavalheiro, andas descalço com tua linda capa de veludo, a gargalhar pela noite, venceste sete guerras, vença pelo menos uma para mim, se eu merecer pois estou em desespero.
Sete Encruzilhadas, conheces as dores e angústias do mundo onde tu vivestes, amaste, sofreste e foste humilhado, mas hoje carrega a Coroa dos infelizes e essa coroa quem te deu foi a misericórdia de pai Oxalá, nos pés de pai Olorum.
Sete Encruzilhadas, coloque debaixo de teu pé esquerdo o nome dos meus inimigos, livrando-me das invejas, calúnias e dos olhos grandes. Põe no meu coração o perdão e a justiça, para me reconhecer e me corrigir das minhas faltas.
Lindo homem de cabelos negros e olhos de cristal, perfuma a minha vida com o perfume das sete rosas vermelhas.
Atenda meu pedido, te imploro Sete Encruzilhadas pois sei que os teus protegidos, tu jamais desampara.
Rei dos sete mistérios, carregas as sete chaves do destino, abra os meus caminhos e me faça feliz, pois contarei sempre com a sua proteção, agora e em todas as horas de aflição.
Saravá Sete Encruzilhadas]
Com religião não se brinca. Há de se respeitá-las, sejam quais forem. Fazem parte da cultura de um povo, pertencendo à sua tábua de valores.
Com o Atlético não se brinca. Há de ser respeitado. Faz parte da nossa cultura. Está nivelado como o mais nobre dos nossos valores.
Como disse Rafael Lemos, está muito difícil falar de futebol neste espaço. Então deixo aqui esta singela homenagem ao povo da Umbanda. Religião que ajuda seus adeptos a segurarem as pontas, neste país onde o PODER se auto-legisla, numa ciranda de cabezas-não-cortadas, a perpetuarem-se revezando nos comandos das organizações sócio-político-econômicas, sempre em prol de seus interesses particulares, não mais em obediência à coletividade, suas necessidades, anseios ou desejos, mas sempre em detrimento desta, através de atos nem tão mais secretos assim.
A privatização de um interesse de natureza pública, faz dos gestores dos últimos anos as bestas auto-suficientes do apocalipse, que não tardará, caso a fé que reste nos corações do nosso povo não se renove, não se alimente.
Para isto é necessária a participação consciente e efetiva deste segmento da sociedade. Também da reflexão dos co-responsáveis, seguida de tomada de medidas por parte destes e de todos os outros, tão urgente como se faz necessário a prevenção contra as próximas epidemias.
João Carlos pegou a BR aliviado. Embora nada tivesse mudado no Atlético, ele sentia-se outro. Assim como ele, incontáveis atleticanos procuram abrigo em sua fé. Nas conversas do estádio, de casa, do serviço, das salas de aula, do boteco, do ônibus, do Fala. Porque a coisa está tão feia que até os ateus estão meditando.
Cumprida a oferenda, João Carlos chegou em casa, uma da madrugada. Melhor, mas não TRANQUILO como o trio do mal. Do MAL-lucelli. Deitou-se na cama. Na TV do quarto passava um pastor. Sobre a mesinha de cabeceira um Budinha. Leu um capítulo do Evangelho Segundo o Espiritismo. Apagou a luz. Rezou um Pai Nosso. Que venha a FORÇA de onde vier. Mas que NUNCA DEIXE MORRER O MEU ATLÉTICO.
Ps: perguntaram porque baixou logo o Clodovil. É que é dele a lente da VERDADE. Serve muito para aqueles que ainda não conseguiram ver o óbvio. D’outro lado, os nossos PASSIVOS, o trio de comandantes, vivem sob a luxúria do monóculo da MENTIRA.
Ps 2: abraço a todos os terreiros, cultos, templos, igrejas e associações Brasil afora, aquelas que conseguem aliviar o sofrimento do nosso povo trazendo-lhes um pouquinho mais de fé no amanhã. Porque hoje, hoje tá f***!
Ps 3: já falaram sobre culinária. Acabei de falar sobre religião. Que venha o próximo, com outro assunto, porque POR ENQUANTO está muito difícil falar aqui sobre Futebol. Sugestão:
-Apareça, Dr. Laertes! Conte-nos sobre a Influenza A!…