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28 mar 2011 - 12h00

As nuvens dos céus de Curitiba

João nasceu em Curitiba, no mês de Julho do rigoroso inverno de 1961. Era portador de uma das chamadas Deficiências Físicas Congênitas, definidas como qualquer perda ou anormalidade de estrutura ou função fisiológica ou anatômica, desde o nascimento, decorrente de causas variadas, como: prematuridade, anóxia perinatal, desnutrição materna, rubéola, toxoplasmose, trauma de parto, exposição à radiação, uso de drogas, causas metabólicas e outras desconhecidas.

Essas deficiências podem se apresentar sob as formas de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral e membros com malformação. João era paraplégico, sofria de paralisia total da metade inferior do corpo e que comprometia as funções de suas pernas.

A condição de deficiente físico sempre impôs a João limitações e cuidados especiais, estes redobrados quando a cargo das mulheres da família. “O João não pode isso, o João não pode aquilo!”. Eram tantas as restrições que João só foi ao estádio assistir à sua primeira partida de futebol quanto tinha sete anos de idade, em 02 de Setembro de 1968, dia em que Sicupira estreou no Atlético Paranaense contra o São Paulo FC. E Sicupira estreou marcando um gol antológico, de bicicleta, diante dos milhares de torcedores que lotavam a Vila Capanema, então estádio do extinto Clube Atlético Ferroviário.

O gol maravilhou a todos, mas diante dos olhos de João, um menino preso à cadeira de rodas, o lance ganhou ares de autêntico milagre. Como é que podia o corpo humano descrever no ar acrobacia tão ousada e, num misto de jeito e de força, arremessar pra dentro do arco um objeto golpeado em pleno movimento? O tento de Sicupira, que entrou para a história como sendo um gol maravilhoso, foi, na vida de João, um divisor de águas. João saiu da Vila Capanema, naquela tarde de Setembro de 1968, mais Atleticano do que entrara e com o gol de Sicupira marcado para sempre nas retinas.

Os dias se passavam e João sempre voltava ao assunto: “Mãe, o gol que o Sicupira fez é inacreditável! Pai, como é que pode? Vô, se um dia eu ficar bom, se um dia eu puder andar, será que eu vou fazer um gol igual ao do Sicupira?”.

“Se um dia eu ficar bom, se um dia eu puder andar, será que eu vou fazer um gol igual ao do Sicupira?” – esta era a pergunta mais dolorida para a família que, invariavelmente, respondia “Deus é quem sabe, João! Deus é quem sabe…”. “E onde é que Deus mora, Vô?”. “Ah, Joãozinho, Deus mora no Céu!”. E era para o céu que João olhava, tardes inteiras, no fundo da velha casa do Campo Comprido, onde o céu parece mais azul. E de olhar para o céu é que João passou a ler as nuvens.

“Pai, olha lá, pai! Aquela nuvem parece um pé chutando uma bola. Você consegue ver, pai? Olha lá, direitinho, um pé e uma bola, uma bola indo pra dentro do gol. Você consegue ver, pai? Decerto é Deus brincando de futebol!”. O pai, na verdade, não via nada, mas aderia à leitura de João, às vezes concordando de pronto, outras vezes propondo outra interpretação “Parece um goleiro espalmando a bola, Jão! Um goleiro dando uma ponte!”.

“Vô, olha aquela nuvem! É o gol de bicicleta do Sicupira desenhado no ar. Você consegue ver, vô? A bola, o corpo desenhadinho na nuvem, o pé lá em cima batendo na bola. A bicicleta nas nuvens, certinha, a bola indo pro gol. Olha lá, vô! Bem certinho: o gol do Sicupira nas nuvens, que nem naquele dia do jogo”. O avô olhou para o céu, depois olhou para João. Lágrimas nos olhos verdes. “Você tá chorando, vô?”. “É de olhar pro sol que a gente chora, Jão!” – o avô disfarçava para não entristecer o menino.

Conheci João em 2004, quando a sobrinha dele, Jéssica, minha aluna na escola, precisou de aulas de reforço e lá fui eu visitar a velha e acolhedora casa do Campo Comprido. A menina, ao me apresentar ao tio, avisou “Professor Rafael, o tio João é o atleticano mais fanático do mundo!”. João, ouvindo isso, se envaidecia e, sem falsa modéstia, assumia a condição de mais fanático atleticano do mundo.

Em nossa primeira conversa, no quintal da casa, tomando o café forte passado pela Jéssica, João me apresentou sua biografia, com especial destaque para o dia 02 de Setembro de 1968, tarde da estreia do Sicupira, com direito a gol de bicicleta. “Rafael, eu tinha sete anos. Era a primeira vez que eu ia ao campo e olha que nem foi na nossa Baixada, foi no campo do Ferroviário. Você nem tinha nascido, eu tinha sete anos. O Sicupira fez um gol de bicicleta que eu vou te dizer…”. E João dizia, em detalhes, como tinha sido o gol de bicicleta do Sicupira e como tinham sido todos os gols do Atlético desde Setembro de 1968. João era, inegavelmente, o atleticano mais fanático do mundo.

Depois daquela primeira conversa, houve outras, sempre na velha casa do Campo Comprido. No quintal, João convidava a ler as nuvens “Rafael, olha aquela nuvem! É o gol de bicicleta do Sicupira desenhado no ar. Você consegue ver, Rafa? A bola, o corpo desenhadinho na nuvem, o pé lá em cima batendo na bola. A bicicleta nas nuvens, certinha, a bola indo pro gol. Olha lá, Rafa! Bem certinho: o gol do Sicupira nas nuvens, que nem naquele dia do jogo que eu te falei”.

Eu olhava para o céu, e não via nada. “Porra, Jão! Não tem bicicleta nenhuma nas nuvens. Você está vendo coisas, Jão! O Atlético anda tão mal que você está começando a delirar!” – eu provocava o João e ele sustentava “Não é delírio, não, Rafa! Olha aquela nuvem! É o gol de bicicleta do Sicupira desenhado no ar. A bola, o corpo desenhadinho na nuvem, o pé lá em cima, batendo na bola. Olha lá! Bem certinho, bem certinho!”.

Em nossa última conversa, João estava quieto demais e me convidou para ler as nuvens. “Rafa, quando eu era pequeno, perguntava se um dia eu ficar bom, se um dia eu ia poder andar e fazer um gol igual ao do Sicupira. Sempre me respondiam que Deus era quem sabia e que Ele morava no Céu! Eu ficava vendo as nuvens e procurando Deus. Só consegui enxergar no céu os gols que, decerto, só eu mesmo conseguia ver. Os gols que só marquei nos sonhos, os gols da minha própria imaginação. Tá vendo aquela nuvem, Rafa? Ela não parece um gol, ela é só uma nuvem que passa rápido no céu, feito a vida da gente na terra”.

No último mês de abril, o corpo cansado do meu amigo João ganhou o repouso eterno. A vida da gente é engraçada. Esses dias, à espera do ônibus no Campo Comprido, olhei os céus de Curitiba. Eu, que nunca tinha visto nada daquilo que João me dizia ver quando lia as nuvens, pude ver, perfeitamente: A bola, o corpo desenhadinho na nuvem, o pé lá em cima batendo na bola. A bicicleta nas nuvens, certinha, a bola indo pro gol. Pude ver, bem certinho, o gol do Sicupira nas nuvens.

João, enfim, chegara aos Céus!

Minha homenagem ao Clube Atlético Paranaense nos seus 87 anos de histórias, de glórias, de vida!

Minha homenagem ao Sicupira – nosso maior artilheiro, com 154 gols.

Minha homenagem ao saudoso amigo João, do Campo Comprido, e a todos os Joões e Marias – Atleticanos e Atleticanas que, anonimamente, dedicam suas vidas ao Furacão há gerações, há 87 anos.

É inútil tentar explicar o amor que a gente sente pelo Atlético: tem coisas que só quem vive pode conhecer, pode dimensionar, pode testemunhar…



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