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13 ago 2011 - 21h11

Aos heróis que a gente resolveu chamar de pais

Um autógrafo do Caju numa folha amarelada pelo tempo. Um autógrafo só, não: uma dedicatória. “Ao Amigo Júlio, um abraço! Caju” – e a folha, convertida em tesouro, passou a ser o maior patrimônio do Júlio.

Todos que passaram pela casa do Júlio tiveram a oportunidade de ver a dedicatória e de ouvir a história sobre ela: “Eu estava em Paranaguá, em janeiro de 1964, na época estava casado com a Leonor. Era final de tarde e, de repente, vejo o Caju andando pela praça, em companhia do Jackson e do Cireno.” – assim o Júlio iniciava a sua sempre comovida narrativa. E prosseguia:

“O Caju foi o meu único ídolo. Em 1964, ele já tinha encerrado a carreira, mas mantinha intacta a imagem que o consagrara. Vocês que são garotos não conhecem o Caju, mas eu lhes digo quem foi ele.” – e a partir desse ponto o Júlio assumia ares de biógrafo e apresentava o Caju com o entusiasmo característico dos fãs mais exaltados.

“O Caju estreou num Atletiba – ele era um guri, tinha seus 18 anos de idade – e eu estava lá, com meus 6 anos de vida, eu era um piá que mal sabia ler a cartilha, mas estava lá. Meu tio Orlando foi quem me levou. Naquela tarde o Caju operou verdadeiros milagres que, em vão, eu tentaria reproduzir mergulhando, repetidas vezes, no monte de cepilho da marcenaria que ficava na Rua Rockfeller, perto da casa do Tio Orlando, hoje construíram ali uma agência do Banco do Brasil”.

“Foi por causa do Caju que eu virei atleticano. Caju fazia defesas maravilhosas – certa vez defendeu um pênalti com uma só mão. Isso mesmo! O cara chutou e o Caju encaixou a bola com uma mão só, sem rebote – tinha amor à camisa Rubro-Negra e se dedicava de corpo e alma ao Clube. Por isso se tornou o maior ídolo da história do Clube Atlético Paranaense. Também por isso é que ele ficou conhecido como A Majestade do Arco. Defendeu o Atlético por 17 anos e nesse período chegou à Seleção Brasileira, sendo eleito o melhor goleiro da América do Sul, em 1942, quando disputou o Sul-Americano como titular absoluto da meta brasileira”.

“Depois de encerrar a carreira, continuou no Clube, ajudando em reformas na Baixada e exercendo várias funções no Atlético. Foi campeão em 34, 36, 40, 43, 45 e 49. Participou do Furacão de 49 – o melhor time de futebol que o Paraná já viu em ação – e foi técnico do time em 58, sendo campeão paranaense”. E o Júlio seguia narrando a história da dedicatória que recebera do Caju, sempre com brilho nos olhos.

“Pois então, eu estava em Paranaguá quando vi o Caju. Vi o Caju, e meus olhos não queriam acreditar: A Majestade do Arco estava ali, o meu ídolo estava ali, quase ao alcance das minhas mãos, no mesmo plano em que eu estava. Encontrar o Caju era um sonho acalentado por mim desde aquela tarde na qual, com 6 anos, vi a Majestade desfilar diante de olhos maravilhados todo o seu repertório de defesas e de milagres. O Caju estava diante de mim e eu iria ao seu encontro”.

“Apertei forte a mão da Leonor como se metesse as esporas num cavalo para acelerar o passo. Ela estranhou: “Por que a pressa, Júlio?” – e eu “Olha o Caju, Leonor. Olha o Caju, porra!”. Foi aí que ela se tocou da importância do momento. Arranjei coragem, cheguei perto do Caju e pedi um autógrafo. A sorte é que a Leonor trazia na bolsa papel e caneta, do contrário, não ia ter autógrafo – ou melhor – não ia ter dedicatória. Pelo menos pra isso aquela praga me serviu”.

Repetindo essa história, e sempre com a dedicatória da Majestade do Arco em punho para que ninguém ousasse duvidar do encontro, o Júlio passou os últimos 43 anos. O Júlio passou os últimos 43 anos da sua vida narrando uma história que durou menos de cinco minutos, mas que valeu uma vida inteira.

Naturalmente, para o Caju foi mais um autógrafo, um dentre milhares espalhados pelo Brasil e pelo mundo, mas, para o Júlio, foi a coisa mais importante que aconteceu na sua existência. Foi o dia mais feliz da sua vida. Foi a realização de um sonho acalentado desde a infância.

Em março deste ano o Júlio morreu. Alguns dias depois de sua morte, estive na casa dele, em companhia dos filhos, Ana e Ricardo, e da Dona Leonor. Era preciso reunir papéis, documentos, dar entrada no seguro, ver as questões previdenciárias, enfim, toda essa burocracia que nos acompanha desde a maternidade até o cemitério e, não duvidem, acompanha-nos até mesmo no pós-morte.

Pastas e caixas minuciosamente inspecionadas por mim, pela Ana e pelo Ricardo. Todos os papéis cuidadosamente separados em pilhas temáticas sobre a mesa da sala: seguro, casa própria, imposto de renda, bancos, carro, casa da praia, INSS. Só um papel ficou passando, de mão em mão, sem encontrar pouso naquelas pilhas: a dedicatória do Caju. “Ao Amigo Júlio, um abraço! Caju”.

A folha, maior patrimônio do Júlio, convertia-se agora em bem de difícil partilha. Os filhos não se julgavam merecedores de recebê-lo; eu, apenas um dos tantos amigos do Júlio, também carecia de legitimidade para a sucessão.

Ninguém saberia guardar a dedicatória como ela merecia. Ninguém poderia contar a história de sua obtenção como o Júlio contava. A dedicatória pertencia só ao Júlio, pois era, na verdade, a sua vida. E a vida é bem inalienável. A vida não comporta inventários, tampouco se fraciona em partilha. A vida é uma só: indivisível, irredutível, personalíssima.

Assim, resolvemos restituir ao Júlio a dedicatória do Caju. Fomos ao Cemitério Parque Iguaçu – a Ana, o Ricardo e eu – e sobre a placa de bronze, onde se lê o nome do velho amigo, repousamos a folha amarelada pelo tempo onde o Caju, de próprio punho, fez consignar “Ao Amigo Júlio, um abraço! Caju”. Sentimos paz, como se tivéssemos escolhido a melhor opção. O Júlio ficaria feliz. Sentimos paz e felicidade, além da saudade.

Naquela noite, choveu forte em Curitiba. Uma noite inteira de chuva seguida por manhã pluvimedonha. Água de não se acabar mais. Lembrei da dedicatória pousada na placa de bronze do Júlio. Liguei para a Ana, ela também tinha pensado nisso. Depois o Ricardo confirmou ter vindo à sua mente a imagem da dedicatória presa à placa.

Decidimos ir ao cemitério e lá pudemos conferir que a folha amarelada havia se fundido à terra, onde repousava o corpo do Júlio. Por isso, é bem capaz que naquele solo, na próxima Primavera, brote uma flor vermelha e preta, muito viva, como as histórias que a gente traz na memória e se orgulha de contar.

Quem sabe naquele solo, na Primavera que se aproxima, brote até mesmo um inacreditável cajueiro que ninguém saberá explicar a origem, mas que a gente, que conheceu o Júlio, saberá perfeitamente explicar, pois, como diz uma das canções preferidas do velho amigo Júlio “O amor tem feito coisas/Que até mesmo Deus duvida/Já curou desenganados/Já fechou tanta ferida”.

E assim a gente segue nesta vida, imersos na saudade, amando e fechando as feridas, que são tantas. Viver é um milagre, mas, sobretudo, viver é acreditar no milagre, seja ele o nascimento de uma criança, seja ele o nascimento de uma flor.

P.S.:

Ao menino Júlio, que aos 6 anos deixou-se arrebatar por uma paixão chamada Atlético Paranaense, um Feliz Dia dos Pais, esteja ele onde estiver.

A todos os meninos que se tornaram pais, um Feliz Dia dos Pais, independentemente de que idades tenham esses meninos.

Ao meu pai, Hélio Fonseca Lemos, pela vida que me deu e pelo exemplo de vida que me dá todos os dias, há 36 anos, Feliz Dia dos Pais!

Aos meus Amigos atleticanos que são pais (Mário Celso Petraglia, Ricardo Barrionuevo, Cezar Rinaldin, Elias Cordeiro, Emílio Sounis Jr., Ayro Cruz Neto, Franco, Barilcka, Marco Onda, Júlio Ramos, Olívio Batista, Juliano Ribas e João Mercer), Feliz Dia dos Pais!

Neste 14 de agosto, Feliz Dia dos Pais aos homens que estarão fisicamente nos braços de seus filhos e aos homens que estarão guardados, para sempre, nos corações e nas melhores lembranças de seus entes queridos.

E tão certo quanto afirmar que Deus é Pai é reconhecer que todo pai tem um pouco (em verdade, tem muito!) de Deus!…



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